A casa em escombros e o fim da biblioteca: de floresta a sementes – Maria Isabel Gomes de Matos
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 6 de ago. de 2024
- 8 min de leitura
Atualizado: 15 de abr.
A casa da Bernardo Guimarães, já desprovida de sua biblioteca, ficou alugada por mais de 10 anos, sem o olhar da proprietária. Transformou-se inicialmente em clínica odontológica, ocasião em que jogaram fora todo o piso maravilhoso de tábuas corridas de madeira de lei e trocaram paredes de lugar sem planejamento. Depois foi habitada por gente desconhecida...
A casa foi cortada, foi furada, foi retalhada, foi maltratada do chão ao teto, ficando praticamente destruída, transformando-se em algo nada bonito de se ver. E, ao final, depois de vendida pelo preço apenas do terreno, teve parte deste dividido entre casas vizinhas.
Por isso, quem atualmente passa por ali tem a impressão de ver não uma casa, apenas escombros de guerra que tentam, num disfarce de cores berrantes e assustadoras, manter-se
de pé.
Entretanto, nada a estranhar, pois, desde que a biblioteca dali saiu, iniciou-se o processo de decomposição do "corpo físico" da casa, uma vez que sua alma já não mais a habitava.
Diante disso, surge a inevitável pergunta. Mas, Bebel, e a magia que havia lá? Extinguiu-se?
Não!!! De forma alguma! A magia da Bernardo Guimarães daqueles tempos antigos concentrou-se nos livros da biblioteca. E essa foi em si também uma grande mágica. Dividir para multiplicar! Cada livro-semente perpetuou, em longes lugares, a magia da casa e a energia positiva e poderosa da biblioteca-floresta, iluminando muitas mentes e corações.
Desde 1975, mudamos de século – e de milênio! No entanto, já perdi a conta de quantas pessoas frequentemente me têm localizado, agora com a facilidade da internet, com incríveis testemunhos sobre aqueles livros, especialmente sobre as observações neles contidas.
Ora me dizem de uma frase assinalada, com um comentário ao pé da página, a despertar profundas reflexões. Ora me falam de breve lição gramatical. Um deles afirmou que, num livro de Machado de Assis, as poucas observações nas páginas foram tão originais e instigadoras que, a partir delas, delineou sua monografia de encerramento de graduação. Como se vê, a magia persiste.
Dez mil volumes! Que tipo de livros havia na biblioteca?
Para quem nasceu no mundo da internet, é impossível dimensionar a importância das bibliotecas. Desde Guttemberg, com a invenção da imprensa, podemos talvez dizer que vivemos uma “era do papel”, visto que todo o conhecimento passou a ser concentrado essencialmente nos livros, em publicações impressas.
A biblioteca do Prof. Santino Gomes de Matos foi, à época, sem sombra de dúvida, a mais completa biblioteca especializada do Triângulo Mineiro, quiçá do Estado, sobre língua portuguesa, filologia e linguística. Todavia, poderia também ser caracterizada como uma biblioteca de “humanidades”, pois, além dos livros relacionados às ciências da linguagem e à literatura, havia uma expressiva presença de obras de teologia, filosofia, psicologia e pedagogia.
Uma característica da biblioteca do Prof. Santino era de ter sido feita pela aquisição e conhecimento, por seu dono, de cada um dos aproximadamente 10 mil volumes que a compunham.
Vez por outra, sabe-se de bibliotecas de 50 mil, 100 mil volumes. Mas nesses casos são reuniões de livros adquiridos, em grande parte, para a biblioteca em si. A biblioteca da Bernardo Guimarães, diferentemente, foi construída para a aquisição individual do conhecimento e, em seguida, para expansão desse conhecimento, repensado e reconstruído na mente do mestre, destinado ao ensino dos alunos, ao compartilhamento de estudos com outros especialistas e à elaboração de seus livros.
A coletânea inicial do Prof. Santino, quando chegou a Uberaba, já podia ser chamada de pequena biblioteca. Iniciada, portanto, na década de 1930, passou a ser atualizada permanentemente. Em 1975, quando ele transpôs o plano físico, estavam ali todos os exemplares relevantes de filologia portuguesa, desde os primórdios; todas as gramáticas existentes (normativas, descritivas, históricas, comparativas) e os mais relevantes compêndios
de estudos vernáculos, editados no Brasil e em Portugal. As obras mais recentes, muitas delas vinham autografadas, uma vez que o estudioso professor mantinha assídua correspondência com experts do país e do exterior. Da mesma forma, os livros inovadores de linguística, assim que editados, logo aportavam na Bernardo Guimarães, sempre no idioma original, tendo em vista o contato mantido por ele com as principais editoras da França, Alemanha, Espanha, Itália, Portugal e América do Norte.
A estante dos dicionários era algo absolutamente de abismar, contendo o que surgia de mais atual e muitas raridades: Antônio de Morais Silva, edições de 1755 e de 1959; Diccionario da lingoa portugueza, da Academia Real das Sciencias de Lisboa, de 1793; Grande diccionario portuguez, ou thesouro da língua portugueza, baseado em manuscrito do Frei Domingos Vieira, de 1857, editado por Adolfo Coelho e Teófilo Braga; Dicionário Contemporâneo Caldas Aulete, edições de 1826, 1959; Novo Diccionario da Lingua Portugueza, de Cândido de Figueiredo (edição de 1926), Dicionário enciclopédico Lello Universal. Estava ali inclusive o grande Dicionário Aurélio, lançado em 1975, devidamente autografado. E mais: A Ortografia Nacional, de Gonçalves Viana, de 1904 e todos os Volps (Vocabulários Ortográficos da Língua Portuguesa, editados pela Academia Brasileira de Letras), além dos dicionários mais populares.
E havia ainda os dicionários especializados: dicionários etimológicos, analógicos ou de ideias afins, de sinônimos e antônimos, de verbos e regimes, de regência verbal e nominal, de monossílabos, de conjugações verbais, de prefixos e sufixos, de gírias, do linguajar popular, fosse carioca, gaúcho ou nordestino, entre tantos outros. A seguir vinham os dicionários de outras línguas, que se dividiam em duas categorias, os unilíngues (inglês-inglês, por exemplo) e os de tradução (inglês-português, por exemplo), abrangendo latim, grego, francês, espanhol, italiano, inglês e alemão. E havia os interessantes dicionários de tupi-guarani e de termos árabes, de frases e expressões latinas, de sentenças filosóficas, de topônimos e gentílicos, dicionários bibliográficos, de provérbios, dicionários auxiliares para compreensão de obras, como o espetacular Dicionário d’Os Lusíadas, e muitos outros mais.
Quanto às enciclopédias, estavam na biblioteca a Enciclopédia Britânica (original, em inglês) e a Barsa, em português. E ainda a Delta Larousse e o Tesouro da Juventude. Para a geração da internet, como explicar a importância das enciclopédias naquelas décadas, fontes principais do conhecimento geral atualizado?
Um dado importante a ressaltar é que, durante todo o longo tempo de existência da biblioteca,
o Prof. Santino facultava, a quem o solicitasse, o empréstimo de quaisquer de seus livros. E sem catalogar os empréstimos, sem anotações de nomes, por incrível que pareça, depois de algum tempo, como mágica, todas as obras voltavam, permitindo ser utilizadas por outras pessoas.
Havia toda uma estante com livros de filosofia, geopolítica, história do mundo e história do Brasil, qualitativamente com o que de mais relevante se produzira, em todas as vertentes: “A república”, de Platão; "A política", de Aristóteles; “Meditações”, de Marco Aurélio; o “Caibalion”, com a essência dos ensinamentos de Hermes Trismegisto; “Assim falava Zaratustra”, de Nietzsche; “O príncipe”, de Maquiavel; e autores como Engels, Foucault, Will Durant, Edward Burns, Caio Prado Junior, Rocha Pombo, apenas para citar alguns dos mais conhecidos.
Logo depois, havia uma estante de aspecto vetusto. Eram os livros de teologia. As obras dos escritores católicos, nacionais e internacionais, ocupavam largo espaço: Gustavo Corção, Alceu de Amoroso Lima, Plínio Correia de Oliveira, Padre Antônio Vieira, Chesterton, Morris West. “As confissões”, de Santo Agostinho; “A Suma Teológica”, “O Ente e a Essência”, de Santo Tomás de Aquino; e tantos outros. Mas não se esgotava nisso, pois o que não era muito aceito em outras bibliotecas à época, em assuntos teológicos ou de religião, por vedação de autoridades episcopais, ali também estava: “Isis sem véu”, “A doutrina Secreta” e demais obras de Helena Blavatsky e de outros teosofistas; “A Grande Síntese”, de Pietro Ubaldi, “Eram os deuses astronautas”, de Erich Van Daniken e outros livros nessa vertente. E a prateleira se completava com toda a obra de Allan Kardec e de Chico Xavier.
A estante de psicologia trazia Freud e Gustav Jung, entre outros, além de obras de psicologia aplicada, e os livros dos maiores pedagogos lá estavam logo a seguir: Edouard Claparède, Jean Piaget, Maria Montessori, Johann Pestalozzi, Ovide Decroly, Friedrich Frobel, Rudolf Steiner, Lev Vygotsy, entre outros.
Quanto à literatura, dos autores em língua portuguesa, evidentemente a biblioteca abrigava o que havia de mais relevante, dos clássicos aos modernos, tanto portugueses como brasileiros, além de livros sobre teoria da literatura. Já as obras de literatura estrangeira resumiam-se às mais clássicas, sempre nos idiomas originais.
A lista das “raridades” era grande. Desde obras como o "Cancioneiro Colocci Brancuti", cantigas de amigo, de amor, de escárnio e maldizer e outras obras marcantes do início da nossa língua portuguesa, a “Demanda do Santo Graal”, até as belas coleções em encadernação primorosa, de Fernando Pessoa, Padre Manual Bernardes, Alexandre Herculano, Ferreira de Castro, lembrando apenas alguns dos autores portugueses.
De todos os estilos de época da literatura brasileira havia representantes ali: do barroco, do arcadismo, do romantismo, do realismo e naturalismo, do parnasianismo e simbolismo, do modernismo. Dos nacionais, chamavam a atenção as edições especiais, como a coleção infantil autografada de Monteiro Lobato, a obra completa de Rui Barbosa (incluindo a Réplica, de Rui, de 1902, e a Tréplica, de Ernesto Carneiro Ribeiro, de 1905), as edições em papel bíblia de autores como Machado de Assis, Lima Barreto, Cecília Meirelles, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Rubem Braga e os demais cronistas modernos de excelência.
Destacavam-se também alguns livros antigos grandes e pesados, ilustrados por Gustave Doré, como "A Divina Comédia", e uma edição especial de "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, e de "Os Sertões", de Euclides da Cunha, com ilustrações. E havia os livros de arte, em papel couchê brilhante, com reprodução em alta resolução das obras de pintura e escultura mais relevantes do Ocidente.
O livro que ficava em destaque na biblioteca era a Bíblia Sagrada. Havia mais de uma edição, para leitura da família, na estante. Mas, num suporte dourado, ficava uma belíssima bíblia com ilustrações, sempre aberta.
Creio que esta descrição foi o suficiente para dar ideia da grande biblioteca. Mas então, de que forma a biblioteca-floresta se transformou em sementes-livros?
Eu trouxe comigo para Belo Horizonte pequena parte dos livros relacionados à língua portuguesa, tendo em vista ter eu continuado no magistério e no estudo desses assuntos. Contudo, quando minha mãe decidiu atender a meu pedido e transferir-se para a Capital, foi preciso dar destino aos demais volumes.
As obras raras, coleções e edições especiais, transformaram-se em presentes nossos para amigos de meu pai, que também tinham suas próprias bibliotecas, e para alguns de seus amigos escritores, com os quais ele se correspondia mais assiduamente. Todos deram a esses livros a acolhida e o valor que mereciam.
Distribuir os exemplares, entretanto, era ação emocionalmente complexa para mim e para minha mãe, pois cada livro fora das coleções tinha observações com a letra de meu pai – sempre a lápis, levemente, para não estragar o volume. Estudioso atento, o filólogo metódico assinalava e comentava, para depois registrar de cada livro lido, uma construção frasal diferente, uma metáfora extravagante, fatos gramaticais relevantes, uma regência ou concordância discrepante, ou então rascunhava breve reflexão sobre o conteúdo da página.
Decidimos então delegar a incumbência a Ana Maria Isaque de Oliveira, uma amiga-irmã minha de coração, que também já partiu deste plano. Ana Maria, inteligentíssima, gostava de ler, era estudiosa de língua portuguesa, e foi nossa vizinha na Bernardo Guimarães, sendo considerada como se da família fosse. Ela aceitou a tarefa de distribuir os livros, que desempenhou com muita eficiência. Tenho para com ela essa eterna e imensa dívida de gratidão.
Depois da distribuição miúda e aleatória, especialmente dos livros de literatura, para escolas e estudantes, tendo sido os livros de filosofia, teologia, psicologia e pedagogia distribuídos para pequenas bibliotecas especializadas, resolveu ela doar uma pequena cota de volumes à Biblioteca Pública de Uberaba, especialmente as brochuras e os livros didáticos. Por isso, o que ali se encontra não representa a “Biblioteca Santino Gomes de Matos”, como gentilmente queriam fazer assinalar, pois aqueles poucos volumes não conseguem transmitir a ideia do que foi a sua biblioteca.
Concluindo: a biblioteca da Bernardo Guimarães já não existe mais, materialmente agrupada em seu conjunto. Não obstante, ela permanecerá inesquecível na consciência de Uberaba, porquanto foi testemunha, por 40 longos anos, da convivência da sociedade local com um homem raro, de extrema coragem e firmeza de princípios, que tanto fez pela educação, pela cultura, pela busca de soluções sociais, pela vocação pecuarista da cidade, pelo engrandecimento do município e da região. Aquela biblioteca testemunhou lições de português e lições de vida, conselhos valiosos que nortearam jovens no caminho do bem, pela palavra e pelo exemplo. Testemunhou estudos metódicos e disciplinados, bem como a redação de poemas de belíssimas inspirações e de artigos e discursos inigualáveis na luta por um ensino moderno e eficiente, na divulgação da cultura e, principalmente, na defesa dos interesses maiores de Uberaba.
