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A biblioteca da Bernardo Guimarães – primeiras lembranças – Maria Isabel Gomes de Matos

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 11 de ago. de 2024
  • 4 min de leitura

Atualizado: 13 de abr.




Nos meus 4 ou 5 anos de idade, eu tinha convicção de que se tratava de um local mágico. Qual não foi o meu espanto quando, anos mais tarde, descobri não ser eu a única a ter aquela sensação...

 

A casa era simples, mas espaçosa, confortável e aconchegante. Os muitos cômodos eram amplos, arejados e iluminados. Localizada na esquina, a residência possuía três entradas, uma pela Ladeira e duas delas pela Rua Bernardo Guimarães: o portão do alpendre e a porta da biblioteca.

 

A sala de estar, ao centro, contendo o piano, poltronas, cantoneiras, à moda da época, comunicava-se com o alpendre e com a biblioteca, abrindo-se também para a sala de jantar.  As tábuas corridas do piso e o piano contrastavam com o tom pastel das paredes e das cortinas, que coavam parte da luz advinda dos muitos vitraux.

 

O alpendre era meu local preferido para brincar. O espaço não era grande, porém as janelas transparentes, que se abriam em toda sua extensão, tornavam-no muito ventilado. Inundava-se de sol tanto matutino, do lado de uma das ruas, como vespertino, de outra parte. As samambaias gigantes e outras plantas adequadamente escolhidas transformavam o ambiente em pequenino paraíso de frescor.   

 

Sempre me alegrava com o sol intenso em céu azul – talvez pela lembrança atávica de Verona ou Mantova, regiões do norte da Itália, terra natal de meus avós maternos.  Mas, ao mesmo tempo, me alegrava muito com as chuvas intensas – talvez também por recordação ancestral, todavia, nesse caso, dos antepassados paternos, portugueses que, muitos séculos passados,

se instalaram no Nordeste do Brasil.

 

Nos dias de chuva copiosa, corria para o alpendre. Impressionava-me a resistência dos galhos das enormes árvores na subida do morro: a castanhola, com suas sete copas, tão bela, e a sibipiruna, com suas flores amarelas, que formavam, depois da ventania, um tapete colorido na calçada.  E havia a enxurrada! Quando a chuva abrandava, reuniam-se ali na esquina todos os meninos da vizinhança, a fazermos minúsculos barquinhos de papel-jornal, para vê-los navegar ladeira abaixo e se desmancharem.

 

No alpendre – na maior parte das vezes com amiguinhas, como Yolanda ou Neli, vizinhas e coleguinhas constantes de folguedos infantis – brincávamos de “lojinha”, de "escolinha", de “casinha”, com panelinhas, bonecas e tudo o mais. No entanto, quando meu pai estava na biblioteca, provavelmente aos sábados, eu não convidava ninguém para brincar e mudava o local de minhas brincadeiras.

 

Entre a sala de estar e a biblioteca, havia dois degraus de madeira.  E era ali que eu então instalava meu espaço de brincar. Meu pai, na sua escrivaninha, sentado naquela cadeira de palhinha giratória, lendo, escrevendo ou tiquetaqueando na máquina de escrever portátil, não se incomodava com minha presença silenciosa, rodeada de livrinhos de histórias, cadernos de colorir e lápis de todas as cores.

 

A bem da verdade, meu pai e eu tínhamos um "combinado".  Eu estava autorizada a ficar ali brincando, desde que ficasse em silêncio. E mais: caso chegasse alguém para conversar com ele, eu deveria imediatamente ir “para dentro”.  Eu obedecia a isso sem rebeldia ou estranheza. Naqueles tempos, as crianças tinham uma convicção muito útil e simples:  de que havia eventos e conversas exclusivas para adultos. Era também minha importante missão, nesse caso, avisar minha mãe sobre a chegada da visita, para que ela mandasse levar à biblioteca uma daquelas enormes bandejas apetitosas, com café fresquinho, suco, chá, em fina porcelana, sempre acompanhados de deliciosos petits fours (éclairs, beurre sables, palmiers, bolachinhas de nata...), todos preparados em casa.

 

A biblioteca, com aproximadamente 10 mil volumes a cobrir suas paredes, abria-se internamente tanto para a sala de estar como para um mínimo jardim interno, a oxigená-la com suas folhagens e velhas orquídeas.  Como mobiliário, possuía, além da escrivaninha e de umas poltronas de couro verde, adequadas à leitura, uma eletrola.  Era um móvel alto, grande, artisticamente talhado, contendo em seu interior um rádio potente, que sintonizava longes estações, um local para guardar os long-plays e um aparelho para tocá-los.  À época, uma modernidade: podiam-se colocar vários discos que “desciam” automaticamente.  Difícil acreditar hoje, com nossos computadores e celulares, o quanto aquilo era tecnologicamente avançado.

 

Nos momentos em que meu pai se via sem visitas na biblioteca, era seu costume ouvir música “clássica”.  Talvez venha daí meu gosto por esse tipo de música...  Contudo, instalada nos “meus degraus”, feliz por me ser permitido ficar ali, lembro-me mesmo era de estar sempre atenta em não apontar muito meus lápis azul-piscina e azul-turquesa, os preferidos, que teimavam em diminuir de tamanho antes dos demais. Entretanto, vez por outra, meu pai dizia: ouça, Bebel, é Tchaikovsky,... é Strauss... , é Debussy... , é Mozart... Eu olhava para a eletrola, ouvia a música e aqueles nomes que, aos poucos, passavam a fazer parte do meu mundo. Mas o que realmente me atraía a atenção naqueles momentos era a cortina branquinha de voil, acima da eletrola, a esvoaçar levemente, devido à brisa da janela. Minha impressão era de que ela tinha vontade própria e, dançando ao ritmo daqueles melodiosos sons, exibia seu bailado para aquele mar de livros tão sérios e imóveis...

 

A biblioteca da Rua Bernardo Guimarães era pura magia, numa infância plena de ternura.

 

 


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