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ANTÔNIO SALES

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 12 de fev. de 2024
  • 4 min de leitura

Atualizado: 10 de abr. de 2024


"Vem de Uberaba, Minas, este livro de versos, em que o autor, em amável dedicatória, se confessa meu patrício. Patrício como brasileiro ou como conterrâneo, cearense? perguntei a mim mesmo, lendo a dedicatória. Mas logo adiante ele fala em jangadas e no vento Aracati. Então é cearense mesmo!


Como quer que seja, trata-se de um poeta de talento.


Neste livro, como acontece com outros que vão aparecendo, há uma mistura de modernismo e passadismo; ora aparecem o metro e a rima à moda antiga, ora desaparecem um e outra; mas o que se nota sempre é que Santino Gomes de Matos é um verdadeiro poeta.


O livro está impregnado de uma profundidade de emoções e de generosidade social, de ternura familiar e de sentimento da natureza. E, ao lado disso, um interesse comovido da vida do povo, dos meios rurais, com todo o encanto de seus tipos e dos seus episódios característicos. Mas a cidade também o interessa e lhe inspira alguns poemas impregnados da tristeza do problema social.


O homo sum de Terêncio parece o lema adotado por este poeta que sente com tanta intensidade e exprime com tanta elegância o seu sentimento.


Abre o livro com 'Oração dos Humildes', que é uma evocação da vida dos nossos jangadeiros e de todos os proletários que lidam nas cidades ou se deleitam nas farras baratas da boemia.


Oração dos Humildes

Venha a canção áspera e rouca

que rebenta do peito tostado dos jangadeiros,

toda vibrada em brodões.


O mastro da jangada,

enrolado no lençol branco da vela murcha,

é como um círio apagado de um culto morto.

Os pescadores cantam para as vagas,

para as garças marinhas,

para a noite, que vai vestir o seu vestido mais lindo,

de gagta borralheira.


Venha a canção dos jangadeiros do mar.

Venham as cantigas da beira do rio,

das lavadeiras que deixaram em casa os filhinhos

e os ninam de longe, de peitos amojados,

com uma voz intraduzível de mães ausentes.

Venha a modinha da moça tísica da fábrica,

que aproveita uns restos d epulmão

cantando, cantando, cantando,

para despedir-se da vida ainda com seu sonho.


Venha, na noite quente,

a amargura bandoleira dos boêmios,

nas serenatas de violão, de cachaça e de cadeia.

Venham os pregões automáticos dos vendedores ambulantes,

a discurseira infame e ridícula do scamelôs

e a cantilena manótona dos cegos,

numa lamúria gasta,

que passa um contrabando de dor à piedade alheia e real.


Venham todas as vozes humanas, de sofrimento humano.

Penetrem o meu coração e vibrem os meus lábios,

que eu quero rezar alto, a oração dos humildes.



Em "Vento do Morro", canta o Poeta as favelas do Rio com um sentimento profundo de suas misérias e degradações. É uma das mais fortes e belas composições do livro.


Muitos espíritos jovens estão dominados por um socialismo ou mesmo comunismo puramente cerebral que os leva a tomar o povo para assunto de seus romances e de seus poemas. Mas são comunistas de camisa de seda, com um talher à mesa do orçamento, incapazes do menor sacrifício, do menor gesto em prol das classes proletárias. Esse comunismo literário é apenas uma moda ou uma corrente artificial que se tem propagado pelo contágio, como outras epidemias intelectuais que passam de quando em quando. Em Oração dos Humildes não se sente esse prurido de demagogia, que se nota em outros escritores novos, mas , sim, há compaixão real, comovente, pelos deserdados da sorte.


Mas há muitas outras e belas cousas no livro além desse tipo de cogitações. Veja-se, por exemplo, esta encantadora estrofe de Praieiro: Se eu fosse praieiro, teria um leito branco e macio, de areia mais alva que a lua, mais alva que um colo redondo de serei, se eu fosse praieiro.


Para nós, cearenses, 'Oração dos Humildes' tem um sabor especial de fruto de nossa gleba, cuja nostalgia se trai aqui e ali como uma homenagem piedosa do filho ausente do Ceará, mas que guarda sempre a lembrança da terra que lhe foi berço.


Tenho pena de não poder fazer muitas transcrições para demonstrar como Santino Gomes de Matos, pela doçura de suas composições líricas, pela pujança de seus brados de piedade pelos desvalidos, pela comovida compreensão dos sofrimentos humanos e ainda pela elegância da forma e a pureza da língua mostra-se um alto Poeta e será uma injustiça se seu livro não tiver um acolhimento caloroso de meios intelectuais."


Artigo publicado no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, exaltando o livro Oração dos Humildes e o poeta Santino Gomes de Matos

Antônio Sales (Paracuru, 13 de junho de 1868 – Fortaleza, 14 de novembro de 1940). Romancista, contista, poeta e político brasileiro. Amigo pessoal de Machado de Assis, ajudou a fundar a Academia Brasileira de Letras, mas não aceitou os vários convites para integrá-la. Uma das figuras mais marcantes da literatura cearense, é patrono da Academia Cearense de Letras, tendo sido designado por Rachel de Queiroz como "a figura suprema das letras na nossa província".












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