A biblioteca e suas visitas – Maria Isabel Gomes de Matos
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 8 de ago. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 13 de abr.
Quantas pessoas circulavam pela biblioteca! Não se tratava de visita combinada. Nem a campainha, que ficava na entrada do alpendre, precisavam tocar, pois, geralmente, quando meu pai estava na biblioteca, deixava a porta da rua aberta. Tempos seguros de portas abertas...
Passavam vizinhos e parentes, para um cumprimento ou um “dedo de prosa”, como se dizia; apareciam alunos e professores, para dirimir dúvidas ou solicitar o empréstimo de algum livro; surgiam amigos, para conversar sobre literatura, trocar filosóficas impressões sobre a vida, sobre política ou mesmo para se aconselhar com o sábio mestre.
Circulavam por ali também pessoas destacadas da sociedade, empresários, fazendeiros, comerciantes, políticos: ora era o prefeito, um vereador, um deputado estadual ou federal, um senador. Nesses casos, além do breve encontro de amizade, vinham em busca do apoio do jornalista e escritor para alguma causa importante de Uberaba. Havendo afinidade de ideais, a partir da visita, emergiriam da pena de Santino discursos ou artigos para publicação em jornais ou revistas.
A biblioteca, naquela casa aconchegante da Bernardo Guimarães, configurou-se, portanto, por largo tempo, como um local de "romaria" intelectual e afetiva.
Nem as eventuais lições de português ali na Biblioteca nem aqueles textos e artigos redigidos posteriormente eram realizados com contrapartida financeira. Ao contrário: surgiam pela amizade ou pela afinidade com a causa defendida. A prova disso são as incontáveis cartas enviadas depois a meu pai, com prestimosos agradecimentos por essas colaborações.
Este meu depoimento é possível não apenas pelos originais que tenho arquivados, relativos a esses acontecimentos narrados, mas também porque minha lembrança dos que frequentavam a biblioteca da Bernardo Guimarães se estendeu desde minha tenra infância até minha juventude, quando meu pai partiu para outro plano. Gostaria de citar muitos deles, que foram amigos de meu pai por toda uma vida, entretanto não poderia nomeá-los sem solicitar autorização deles próprios ou de seus descendentes para tanto, o que tornaria a tarefa impraticável.
Não obstante, vou citar um amigo da família – cujas cartas posteriores dirigidas a mim e a minha mãe assim me autorizam. Durante minha infância, ele muito me impressionava, naquele tempo talvez por sua figura austera e elegante ou por sua voz eloquente: Monsenhor Juvenal Arduini.
A fraterna amizade entre meu pai e Monsenhor Juvenal Arduini, sem dúvida, tem veios de eternidade. O último texto escrito por meu pai, então hospitalizado, foi um lindo soneto de agradecimento ao amigo que, durante sua longa enfermidade (30 dias no Hospital São Domingos), todos os dias o visitava, para breves horas de suas preciosas conversas.
Ao longo dos anos, tive o privilégio de conhecer melhor Monsenhor Juvenal, e muito teria a dizer dessa figura espetacular. Mas o que neste momento vem à minha reflexão é uma característica peculiar daquelas duas almas: os dois amigos possuíam afinidades literárias, de cultura e mesmo de fé, mas tinham também pontos de vista bastante discrepantes sobre certos assuntos, em especial sobre os rumos para o progresso do Brasil. Contudo, isso nunca foi motivo a dificultar a amizade. Pelo contrário! O respeito mútuo pelas ideias divergentes, a troca de argumentos de forma calma e ponderada, sem intenção de convencimento, jamais interferiram na sua convivência. Juntos, nem pareciam ser os gigantes de oratória que eram. Trocavam ideias, meditavam sobre os aspectos conflitantes explanados e saíam da conversa ainda mais amigos. Um exemplo para os dias de hoje, quando opiniões díspares têm destruído amizades e até núcleos familiares.
Quem vinha à biblioteca da Bernardo Guimarães, sempre voltava. O que os fazia querer sempre ali voltar? Talvez aquela indescritível leveza do ambiente, aquela fraterna energia de aconchego, a acolher almas e corações. Pura magia da boa e elevada convivência humana.

