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Breves relatos: o menino-coragem, o jovem destemido, o homem sem temor diante das causas justas e nobres

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 25 de fev.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 15 de abr.





A fazenda dos avós de Santino era de grande extensão e bastante produtiva.  Criava-se gado, havia plantações.  A grande dificuldade era o clima da região, quente e muito seco, mas havia um rio dentro da propriedade, que possibilitava algum sistema de irrigação. As margens do rio eram sombreadas por muitos mulungus e enfeitadas por murerés, com suas flores amarelas, e por bromélias, com suas flores vermelhas.

 

A casa, em estilo colonial, espaçosa, com pé direito alto, possuía uma sala enorme, comprida, com muitos  janelões azuis. A sala, que se abria para varandas enfeitadas por jitiranas azuis, era dividida em três ambientes.  O primeiro, a sala de  visitas, propriamente dita, com cadeiras de palhinha, mobiliada à moda da época, decorada com gravuras emolduradas do Sagrado Coração de Jesus e de Maria e alguns quadros a óleo pintados por artista especialmente contratado para a tarefa, representando a casa da fazenda, cenas bucólicas e o retrato dos donos da casa. O segundo ambiente era a sala de jantar, com sua mesa enorme e pesada, as cadeiras de espaldar muito alto, cristaleiras e um buffet. O terceiro ambiente, separado da sala de jantar por uma espécie de biombo fixo em madeira vazada, era um cômodo menor, que se abria para a cozinha e que continha um oratório e diversas redes estendidas.

 

Na frente da casa, havia um grande espaço calçado com pedras e alguns canteiros com rústicas plantas típicas da caatinga: pés de angico, quipás, xique-xiques, mandacarus, cujas  flores eram de raro encantamento. Dali, saía um caminho estreito, também calçado com pedras, ladeado por um tapete de azedinhas, que terminava numa pequena capela, na qual era rezada semanalmente uma missa para a família e os empregados da fazenda.

 

Ao fundo, o varandão abria-se para o quintal, que tinha um enorme pomar: cajueiros, mangueiras, umbuzeiros, bananeiras, pequizeiros, pinhões-bravos, que alegravam a vista com suas flores e cujo látex era usado como cicatrizante ou contra veneno de cobra. As dezenas de árvores espalhavam-se sem planejamento algum. As galinhas d'angola ciscavam livremente

por ali.

 

Os pais de Santino moravam na cidade, onde possuíam uma escola, a qual dirigiam e na qual lecionavam.  Eram muitos filhos: uma “escadinha”, como se usava dizer.  Antes de completar um ano de idade, Santino adoeceu seriamente.  Para receber os devidos cuidados prescritos, os avós o levaram para a fazenda.  Ele se recuperou, mas os avós insistiram para que deixassem

o garotinho com eles.  Todos os filhos do velho casal já eram casados e nenhum deles residia na fazenda. Sentiam falta de criança em casa.

 

A vida do menino Santino na fazenda era paradisíaca.  À parte dos mimos da avó, era ele o companheiro do avô, que vistoriava pessoalmente todas as atividades da fazenda. Madrugada ainda, saíam a cavalo. E não era raro que, antes de retornarem à sede, pela hora do almoço, parassem no rio, pois o avô deveria ensinar o neto não só a cavalgar, mas também a nadar.

 

Após o almoço, depois da sesta nas redes, iniciavam-se os estudos. Havia um quarto, que era usado como escritório do Major. Era uma espécie de pequena biblioteca, porque havia estantes repletas de livros.  Tendo estudado em Portugal, era ele um homem bastante culto. Num dos cantos da sala, havia uma mesa com um globo terrestre, com os continentes em alto relevo, que servia para o ensino de geografia, e enormes livros ilustrados de história universal.

 

O avô se comprometera com a filha e genro de que se encarregaria da educação do menino.

E assim o fez. Por isso passavam boa parte da tarde ali, o menino estudando disciplinadamente, sob a severa batuta do avô, que concomitantemente cuidava da contabilidade de seus negócios, sentado em sua escrivaninha.  O empenho do professor foi grande e a genialidade de Santino logo se revelou.  Aos 4 anos lia e escrevia perfeitamente.  Aos 6 anos já falava francês fluentemente.

 

Uma das memórias mais antigas de Santino – ele bem pequenino – foi a de certa tarde, após o almoço, ele numa rede, o avô em outra e o Padre Medeiros em uma terceira rede, no cômodo que ficava conjugado à sala de jantar.  Padre Medeiros, muito amigo do major, havia rezado a missa pela manhã e ficado para almoçar, estando ali a conversar com o anfitrião enquanto "faziam o quilo".

 

O calor era muito intenso, quando se iniciou uma “chuva de raios”, ou seja, muitos relâmpagos sem trovões e sem chuva.  De repente, vários raios cruzaram a sala, de um lado para o outro, passando pelas janelas e indo cair lá no quintal, nas grandes árvores. Imagine-se o espanto do menino, com aquele espetáculo único de beleza e perigo. Jamais se esqueceu daquilo.


Esse fenômeno da "chuva de raios" acontece quando as nuvens de tempestade estão em altitudes elevadas e o ar está muito seco, fazendo com que a chuva evapore bem antes de chegar ao solo. Provavelmente, se os três não estivessem nas respectivas redes, se pusessem os pés no chão,  talvez o desfecho tivesse sido trágico.

 

Na conjugação de atividades ao ar livre e atividades intelectuais, crescia Santino. A saudade

dos irmãos era amenizada pelas brincadeiras com os meninos da fazenda, nas noites estreladas. Além disso, o avô possuía uma casa na cidade, onde passavam eventualmente algumas semanas, quando algum negócio exigia a presença do fazendeiro. E, nas festas de São João e nos natais, filhos e netos todos se reuniam na fazenda.

 

As festas juninas, herança da colonização portuguesa do século XVI, que inicialmente ocorriam em homenagem a São João Batista, ao longo do tempo passaram a incluir homenagens a outros santos populares, como Santo Antônio e São Pedro. Essas festividades passaram então a durar vários dias e se transformaram em tradição familiar em todo o Nordeste.

 

Num desses períodos de reuniões familiares juninas na fazenda, certo dia a meninada resolveu

ir nadar no rio.  Todas as recomendações foram dadas, especialmente aos mais velhos, para que cuidassem dos irmãos e primos menores. A tarde corria em alvoroço e alegria, todos se divertiam na água.  Mas, de repente, o nível da água se elevou rapidamente e a correnteza, antes suave, ficou violenta. Provavelmente chuvas fortes começaram a cair nas distantes cabeceiras do rio. 

 

Os meninos, previamente alertados para esse tipo de perigo, saíram de imediato do rio.  Mas, quando já estavam na margem, em segurança, avistaram Pedro, irmão mais novo de Santino, como hipnotizado, preso num galho, no meio do rio, próximo a um redemoinho que se formava.  A gritaria foi geral, mas nenhum dos meninos maiores quis se arriscar.  Então Santino, com apenas 7 anos de idade, sem hesitar, pulou novamente no rio. Ele relatava que disse ao irmão algo assim: “Não me empurre, apenas segure em meu ombro, que eu te guio e vamos sair daqui”.  Santino salvou o irmão Pedrinho, tendo sido lembrando por muito tempo nas histórias

da família como o menino-coragem.

 

No Natal daquele ano, os pais de Santino o levaram de volta para a casa deles na cidade, apesar dos protestos do menino e dos avós. Os irmãos estudavam na escola dos pais e iam adiantados.  Mas Santino, com seu empenhado “professor particular”, já tinha uma cultura invejável, compatível com alguém muito mais velho.  Por isso, os pais o levaram para ajudá-los na escola, tornando-se ele responsável por alguns alunos um pouco mais velhos que ele, que iriam iniciar os estudos fora do calendário habitual. Portanto, ele começou a lecionar com 8 anos de idade.  Assombroso!

 

Quando Santino completou 12 anos, entretanto, a família tomou uma nova decisão em relação a ele. Era costume das família católicas de então que um dos filhos fosse enviado ao seminário, para tornar-se padre.  Santino foi escolhido para tal missão, que era considerada honrosa.  Não queria ir, mas não havia como dizer não aos ditames dos pais.  E lá foi ele para o Seminário do Crato. Ali, com sua inclinação natural para o estudo, além de matérias como filosofia, lógica e teologia, das meditações sobre os textos de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, do estudo da Bíblia, das leituras dos livros clássicos indicados, aprendeu de forma disciplinada e aprofundada latim, grego, português e francês.

 

No seminário, Santino protagonizou um episódio inesquecível para todos os que estavam presentes, pela forma destemida com que o jovem seminarista defendeu uma causa.

 

Quem melhor relata esse episódio é o Monsenhor Francisco Holanda Montenegro, que dirigiu o Colégio Diocesano do Crato, desde 1938, por 25 anos.  Eis o trecho de sua carta a Santino, anos mais tarde, em que rememora o ocorrido, do qual foi o beneficiário.

 

 “(...)

Santino, como me recordo dos tempos do Seminário! E, principalmente, do episódio em que, aos 11 anos, fora me aplicado injustamente um castigo. Lembra-se? Você, pouco mais velho, com coragem inigualável, juntou os seminaristas todos e, como líder da comunidade, marchou até o Padre Prefeito para lançar um protesto veemente contra a injustiça. Como meu advogado, com muita energia, com tanta sinceridade, com tanta lealdade, usando de linguagem tão convincente que deixou o Padre Prefeito atordoado, não tendo outra saída senão a de me liberar do castigo. Creia, meu prezado, que aquele seu gesto magnânimo, revelação de um coração profundamente humano, ficou bem gravado no meu subconsciente e, por mais de uma vez, já tive oportunidade de relatar esse fato aos meus alunos.”

 

Alguns anos depois, Santino, entendendo que não tinha vocação para o sacerdócio, decidiu opor-se ao desejo da família e deixou o seminário.  Dali em diante, completou seus estudos para se tornar o grande e renomado mestre, jornalista e escritor.

 

Muitos eventos da vida de Santino comprovam sua extrema coragem e destemor. A Verdade e a Justiça sempre foram seu leme e disso nunca se afastou. Vou relatar apenas um desses acontecimentos.

 

Era época da segunda guerra mundial. Santino era redator-chefe do jornal Lavoura e Comércio. O jornal primava por trazer as principais notícias e ocorrências da cidade e da região. Para tanto, havia repórteres que apuravam detalhadamente os fatos, somente sendo publicado no jornal algo que fosse relevante para a cidade e desde que houvesse comprovação do acontecimento. 

 

Certo dia, descobriram, na região do Triângulo, que um padre alemão transmitia informações dos aliados às hostes nazistas, atuando como verdadeiro espião. Havia provas materiais incontroversas, tendo sido realizado processo legal sobre o caso. O Lavoura e Comércio não poderia deixar de noticiar o acontecido, que era deveras chocante, naquele terrível clima da grande guerra.

 

Notícia publicada, um bispo indignou-se, pois não queria que aquilo chegasse ao conhecimento dos cidadãos, em especial dos católicos, independentemente de ser uma verdade incontestável. Assim sendo, usando de sua autoridade episcopal, entendeu-se com o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), órgão criado no Brasil em dezembro de 1939, por decreto do presidente Getúlio Vargas e que serviu como instrumento de censura durante o Estado Novo. Logo depois, o Lavoura e Comércio recebeu a notificação de que seria fechado definitivamente, "por notícias contra a igreja católica". 


De imediato, Santino partiu para o Rio de Janeiro (então capital do Brasil), munido de toda a documentação referente à notícia apresentada pelo jornal. Todos temeram por sua vida ou sua liberdade, pois eram tempos sombrios. Mas, com habilidade e coragem inauditas, e com seu poder de argumentação, conseguiu reverter a decisão, podendo o Lavoura e Comércio continuar a ser editado normalmente.

 


Espero que essas pinceladas de memórias possam ser um incentivo aos descendentes de Santino e a todos os que lerem estas páginas, no sentido de que sigamos este exemplo de firmeza de caráter e nunca esmoreçamos na defesa dos nobres valores, pois o Bem precisa – e hoje mais do que nunca – de intimoratos trabalhadores da Luz.

 
 
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