CARTA ABERTA COM ENDEREÇO AO CÉU – SANTINO GOMES DE MATOS
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 10 de mai. de 2024
- 3 min de leitura
Cleômenes,
É da sua última carta, pouco antes da partida definitiva, em que também levou grande parte de mim, que tiro o início deste colóquio, numa frase que dá a medida do estilo de brilho incomum que possuía, aliás, com depoimento consagrador do festejado cronista Ataliba Guaritá Neto: "o senhor é dos que vibram em vencer-se a si mesmo".
Talvez você, como ele, me tenha visto assim realmente, com um traço característico, embora refrangido na preocupação filial de me prevenir contra quaisquer excessos prejudiciais à minha saúde abalada.
Tenho de dizer-lhe, porém, meu filho, que aquela fibra de resistência, em tantos anos de lutas, com bem mais derrotas do que vitórias, se acha terrivelmente enfraquecida, desde que nos separamos no mundo sublunar, pelo abismo da morte.
Antes de ser Cleômenes, o que deseja ardentemente a glória, de acordo com o significado grego do seu nome, você procurou ser o filho mais dedicado de que reza a história dos filhos.
E do irmão todo afetos e solidariedade irrefragável, a qualquer prova; e do esposo e pai com plenitude de coração e responsabilidade integral; e do amigo cheio de dedicações exuberantes na sinceridade e na franqueza: – falam os que de perto sentiram a grandeza humaníssima da sua personalidade.
Não encareço nem enfatizo, num panegírico de amor e saudade, por influência de uma hora intensamente emocional.
Os fatos aí estão, na consternação dos muitos e muitos amigos e admiradores que conquistou, onde quer que você se fez presença, nas várias atividades exercidas.
De nós, a sua permanência num setor de trabalho longe do nosso convívio nunca foi precisamente uma ausência. Participava de tudo, solícito e carinhoso, interessando-se para prevenir ou remediar, por todos os assuntos da família em que nunca deixou de ser o primogênito, nas audiências e decisões. E, ao menor sinal de necessidade de ajuda, que captava com antenas sensibilíssimas de amor e dedicação, voava até nós, deixando afazeres e negócios, sem medir prejuízos de ordem material, a fim de tomar a dianteira das providências e dos sacrifícios.
Foi assim que esteve recentemente ao meu lado, pela segunda vez, como incansável companhia dos dias e das noites longas de hospital, com inarredável abnegação.
Você, Clêomenes, vai perdoar-me que proclame, de público, as virtudes raras que o exornavam. Sinto-me no dever de fazê-lo, porque, embora truísmo, é verdade inconcussa que “uma alma que se eleva também eleva o mundo”. E nunca o mundo, tão cheio de egoísmo, saarizado de interesses mercenários, andou mais precisado de exemplos de edificação espiritual e moral.
Você nos prometia uma visita dentro de poucos dias, com esperada insofrida da nossa parte. Verdadeiramente infausta e dolorosíssima a maneira como veio. Mas a velha casa em que nasceu, e que o aguardava com festas, após a sensação de desabamento pela sua morte, volta a iluminar-se com as alvíssaras da sua presença.
Sentimo-lo conosco, na realidade de uma vigilância no céu, de olhos e de coração voltados para a casa dos pais e dos irmãos onde, no alvoroço de uma chegada, afinal, continua a compor o quadro da família de cinco pessoas que, no denominador comum do seu amor, encontraram a escada de jacó entre o céu e a terra.
Falava eu, de começo, das fibras dilaceradas da minha coragem, da parte de mim que desceu com você ao túmulo. E acabei proclamando o prodígio triunfante da comunhão dos santos, no espírito da santa igreja católica, que teve em você fervoroso militante.
Na verdade, Cleômenes, você está no meio de nós, no milagre da visão sobrenatural do seu carinho e da sua bondade.
Desta forma é que lhe dá as boas vindas, em nome de todos de casa, seu velho pai.
Carta publicada no jornal "Lavoura e Comércio"
