CLEÔMENES – UM SOL EM NOSSAS VIDAS
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 30 de mai. de 2024
- 15 min de leitura
Atualizado: 18 de abr.
Esta página é uma homenagem a meu irmão, Cleômenes Gomes de Matos. Ao traçar sua biografia, decidi trazer a lume acontecimentos de nossa realidade cotidiana à época, cenas
de nosso dia a dia em família, com minhas impressões, a fim de que possa ser conhecida,
de forma mais viva, sua incrível personalidade. Vou fazê-lo, por dois motivos:
O primeiro, como esforço deliberado de carinho, para que os seus descendentes possam compreender a grandeza do avô e também vislumbrar como era a nossa vida familiar na sociedade uberabense naquelas décadas de 1960–1970.
O segundo, porque neste mundo de hoje, em que os valores de edificação moral e espiritual não encontram a devida guarida, em que não se laureiam os heróis da vida comum, quem sabe estes relatos possam se transformar em fonte de inspiração para algum jovem que por acaso passe por estas páginas? Uma única pessoa beneficiada, já terá valido a pena.
Santino e Yone escolheram o nome Cleômenes – nome originário do grego, um tanto diferente e pouco usual – pelo seu significado: “Cleômenes = o que deseja a glória”. E Cleômenes fez jus ao seu nome, pois que glória maior existe do que ser luz na vida de outrem?
Com efeito, a glória a que Cleômenes parecia desejar era sempre exceder a si próprio, buscando empenhar o melhor de si mesmo em tudo o que fazia, fosse como filho, irmão ou neto, como marido, como pai, como amigo, como cidadão, nos estudos, no trabalho, na vida social. Sem abdicar de seus sonhos e realizações, colocava em prática o Bem em cada mínima atitude, agindo sempre com olhar compassivo e generoso para todos com quem conviveu. E, nessa busca, foi gloriosamente luz em nossas vidas!
Cleômenes nasceu em 10 de maio de 1945. Chegou para superlativizar a felicidade do casal Santino e Yone. Criança encanto em saúde, inteligência e beleza, teve uma infância feliz e uma adolescência sem percalços no ambiente amoroso e sereno da família.
Comunicativo desde a mais tenra idade, era um menino de opinião e de sorrisos. Sociável desde cedo, gostava de estar com outras crianças e de repartir seus brinquedos. Da escola, da vizinhança, do clube – os grupos de amigos de infância, adolescência e juventude perpetuaram-se vida afora.
Esperava que Evandro, nosso outro irmão, pouco menos de dois anos mais novo que Cleômenes, pudesse trazer suas impressões e, em especial, relatar as peripécias da meninice de ambos. A “bandinha” da rua, o futebol e tantas aventuras. Mas isso será agora impossível, infelizmente, pelo repentino falecimento de Evandro.
Nas minhas memórias mais antigas, pela diferença de idade, meus irmãos já eram adolescentes. Cleômenes, nosso Cleo (como o chamávamos em casa), era 12 anos mais velho que eu. Que ser humano raro! Um adolescente que conciliava suas atividades (escola, esportes, convivência com amigos) com atenção especial aos familiares, incluindo as crianças e os idosos, fazendo isso espontaneamente, de iniciativa própria, com entusiasmo, alegria e autêntica satisfação. Lições de Mestre Jesus em prática: ser feliz e fazer a felicidade dos demais.
Uma recordação bem remota: eu teria uns 5 anos de idade. Cleo conversava comigo como se eu fosse mais velha. Aquilo fazia com que eu me sentisse a pessoinha mais importante do mundo. Naquele dia ele me contou seu plano de comprar um gravador, um toca-fitas, com o objetivo de gravar músicas e conversas com os mais velhos, contando coisas de tempos antigos. Hoje, com celulares, e até óculos que filmam, tiram fotos e gravam áudios com apenas um toque, fica difícil entender do que se tratava: um equipamento eletrônico precário, embora moderníssimo para a época, em que se instalavam as famosas fitas magnéticas K7, para gravar sons ou reproduzi-los.
Esse projeto do Cleo foi a minha primeira lição prática de economia. Eram épocas de inflação quase galopante. O Brasil passou por várias crises inflacionárias, até que surgiu o “real”. Por isso aqueles muito jovens não conseguem sequer imaginar o que significava uma situação econômica dessas. Pode-se resumir dizendo que o preço dos produtos subia todos os dias, de forma que o valor de qualquer item praticamente dobrava de um mês para outro. Os adultos faziam aplicações financeiras, para preservar o valor monetário de seus recursos. Mas Cleo queria fazer a compra por conta própria, me confidenciando que não pediria dinheiro a papai ou a mamãe, economizaria de sua mesada, para resultar em surpresa. Um adolescente economizar da mesada para comprar algo cujo preço “corria à frente" não era fácil. Entretanto, economizou, depois vendeu um lindo álbum de selos que montara e conseguiu seu intento. E eu cumpri o prometido: guardei segredo desse plano até a sua realização.
Que felicidade para vovó contar para nós, à frente do gravador, as histórias da Itália, da Argentina, de seus pais, irmãos e avós, e especialmente de seu namoro e casamento com Giacinto, nosso avô, falecido há tantas décadas. E, logo depois, como ela se divertia ao ouvir seu próprio relato!
Em relação à vovó, recordo-me muito, também, alguns anos mais tarde, eu teria uns 9 anos, da disposição do Cleo para “levar vovó para passear”. Embora bastante idosa, nossa avó era muito lúcida, participativa, e amava “passear de automóvel”. Pois Cleo, em quantos sábados à tarde, deixava outras atividades ou divertimentos para isto: pegar o carro, me chamar e buscar vovó para passear pela cidade.
Ela vestia-se para a ocasião e, muito cheirosa, com seus lindos cabelos de neve (levemente azulados, porquanto os enxaguava com uma solução de anil), com aquele sotaque gostoso, numa mistura de italiano, castelhano e português – ia comentando as novidades que via, uma construção nova, uma praça que se abrira em flores. O passeio geralmente terminava na sorveteria do Sr. Joaquim, na praça do Grupo Brasil. Vovó pedia sempre um tal sorvete de ameixa. Cleo, então, me perguntava: – E você, quem sabe prefere algo mais radical, um “chuvisco”, talvez? O “chuvisco” era uma mistura de guaraná com sorvete de limão. Que glória! Eu me sentia a mais moderna das meninas.
Quando Cleômenes tinha 16, 17 anos, a Bernardo Guimarães testemunhou muitas reuniões festivas juvenis. Essas reuniões dos jovens nas casas das famílias de amigos, sempre supervisionadas pelos pais, nunca passando da meia-noite, ocorriam sem uma data a comemorar e eram comuns à época. Meus pais permitiam e discretamente supervisionavam, obviamente. Não se tratava de uma festa. Não havia música ao vivo, garçons, nada desse tipo. Era algo informal, só para os jovens. Chamavam de "horas dançantes". Eu, pequena ainda, não participava. Entretanto, era-me permitido dar uma olhadinha na preparação da festa pela porta vai e vem.
A sala de jantar desembocava – por meio dessa porta vai e vem, uma portinhola de duas folhas móveis, de aproximadamente um metro de altura, de madeira trabalhada com vidro jateado – num corredor, que dava acesso à parte íntima da casa. Ao lado dessa porta, na parte de dentro da sala de jantar, ficava o belíssimo relógio suíço, que marcava as horas em badaladas que lembravam sons de sinos tibetanos.
Eu conseguia ficar um pouquinho ali para apreciar o movimento antes de as badaladas do relógio indicarem que os convidados estavam para chegar e que era hora de eu ir para meu quarto.
A mesa da sala de jantar e as cadeiras eram afastadas para os cantos do ambiente, permitindo que o espaço se transformasse em uma “pista de dança”. Sobre a mesa, coberta com alguma toalha de linho, finamente bordada, muitas gostosuras usuais da época, além das tradicionais empadinhas e coxinhas: canapés, minissanduíches (pequenos pãezinhos caseiros redondos, receita de minha avó, com recheio de azeitonas pretas, ou quadradinhos de pão de forma com recheios coloridos), barquetes de maionese, palitinhos de “frios” (azeitona, queijo provolone, salaminho) espetados no abacaxi, bolinhas quentes de queijo canastra e tantas outras delícias.
Cleo era muito criativo e, com a cumplicidade de minha mãe, preparava antecipadamente, em taças de cristal, os famosos mocktails (drinks sem álcool, em geral utilizando frutas). Um aspecto interessante da época é que refrigerante não era algo a ser tomado a qualquer dia: apenas em festas e, em algumas casas, nos fins de semana. Nessas horas dançantes, ao lado da mesa, colocavam então uma champanheira de vidro, cheia de gelo, na qual ficavam os refris (como se chamavam naquele tempo: grapete, crush laranja, fanta limão, coca-cola, guaraná antártica e
até guaraná golé, fabricado em Uberaba).
Quanto à música, vinha em alto som desde a eletrola da biblioteca, tendo sido os “long-plays” escolhidos antecipadamente. Tempos alegres de diversão saudável.
Mas as festas eram eventuais. Na vida cotidiana, os estudos eram levados muito a sério.
Cleômenes, na formatura no Colégio do Triângulo Mineiro, que naqueles tempos ocorria em evento solene no Cine Metrópole, foi destaque de um acontecimento memorável para a instituição. Professor Santino, mestre muito estimado, havia sido eleito pelos alunos como paraninfo da solenidade. Ao mesmo tempo, Cleômenes fora escolhido pelos colegas como orador da turma. Dois belos discursos, em diferente diapasão, aplaudidos de pé.
Muito dinâmico, além de cursar o ensino médio (o "Clássico"), Clêomenes concluiu, no Senac, o curso técnico de comércio, tendo sido também naquela ocasião orador da turma. O seu discurso de formatura, na Associação Comercial e Industrial de Uberaba, foi extremamente apreciado e, com ênfase, divulgado na imprensa, com vários comentários predizendo uma precoce vocação política.
Esses dois cursos, um deles não habitual para os jovens da época, já preanunciavam, entretanto, as duas atividades em que se vislumbraria o sucesso de Cleômenes: advocacia e comércio.
Com efeito, encerrado o ensino médio, prestou vestibular para a faculdade de Direito. Eram tempos politicamente agitados, especialmente para jovens idealistas, que sonhavam utopias de um mundo diferente. Com alguns colegas, sem se descuidar do estudo criterioso das matérias jurídicas, participava da edição de um jornalzinho universitário bastante combativo: "O Brasinha". Coisa perigosa à época...
Nas famosas “semanas jurídicas”, que movimentavam a intelectualidade do município, ele foi sempre presença marcante. Assim escreveu o jornalista que acompanhou um dos eventos em que meu irmão conquistou o primeiro lugar:
“Cleômenes Gomes de Matos, defendendo a tese 'Papel da Universidade – valores intrínsecos e extrínsecos' , conquistou o primeiro lugar na Semana Jurídica. Jovem de 21 anos, segue a mesma trilha de seu brilhante pai, Prof. Santino Gomes de Matos. A tese defendida por Cleômenes estuda com profundidade os aspectos do papel da Universidade. Pela coragem e convicção com que expôs seu pensamento, o jovem estudante teve sua voz cortada pelos aplausos durante a fala e foi entusiasticamente aplaudido no final. Ainda mais valorizado ficou o primeiro lugar de Clêomenes pelo mérito das teses defendidas por Claudiovir Delfino e Renato Montandon, que ficaram em segundo e terceiro lugares. De parabéns Cleômenes, que, além de criterioso funcionário do Banco de Crédito Real e destaque do nosso teatro amador, brilha agora na Faculdade de Direito do Triângulo Mineiro”.
O jornalista já apontava as diversas atividades de Cleômenes, em seu incrível dinamismo: a um só tempo, aplicado estudante universitário, responsável funcionário do Banco de Crédito Real, participante de grupo de teatro (Núcleo Artístico de Teatro Amador – N.A.T.A.), esportista, presença nos eventos culturais e sociais. Talvez fosse a pressa da vida, instigada por força do Universo, consciente de que seu tempo seria curto nesta existência.
As peças encenadas pelo N.A.T.A. fizeram história na cidade, sendo muito prestigiadas pela sociedade local. Esse hobby, ao qual Cleômenes se dedicou, participando de diversas encenações, configurava também uma iniciativa de empreendedorismo daquele grupo de jovens, que conseguiam o patrocínio dos espetáculos teatrais pela contrapartida de propaganda nos folhetos das peças. Talentos para a arte cênica, talentos para o comércio.
Além do teatro, meu irmão apreciava os esportes, participando ativamente dos jogos universitários. Seu esporte preferido era a natação. Frequentador do Jockey Club desde sempre, muito aproveitou a velha piscina. E comparecia também a diversas atividades sociais do clube.
Assíduo no Jockey, foi ali que conheceu Thaís, a jovem que depois se tornou sua esposa. Nas colunas sociais, os dois eram frequentemente identificados como “um dos casais perfeitos do Jockey”.
Apaixonado, romântico, o entusiasmo com que Cleômenes desde o início se referiu à sua amada fez com que todos em casa a estimássemos de imediato. Eu, então adolescente, fui particularmente entusiasta da escolha dele, pois considerava Thaís uma das moças mais belas
e elegantes da Uberaba daqueles tempos.
Encerrado o curso de Direito, Cleômenes, em carreira ascendente no Banco de Crédito Real, onde já ocupava cargo de chefia de setor, e trabalhando concomitantemente em projetos em renomado escritório de advocacia da cidade, foi convidado a transferir-se temporariamente para São Paulo, para atuar junto à área jurídica da instituição.
Era uma época de inovações. O banco começava a se informatizar, com os primeiros computadores. Os funcionários ocupantes de cargos de nível superior da empresa, inclusive da área jurídica, foram levados a aprender sobre linguagem de programação de computadores, à época a Common Business Oriented Language (Cobol). Não se tratava ainda de computadores individuais. Eram máquinas enormes de armazenamento de dados, unidades precárias para a tecnologia de hoje, porém inovadoras e complexas na sua implementação de uso. A iniciativa daquele banco, além da inusitada experiência, possibilitou uma visão ampla de perspectivas futuras para os que participaram daquelas atividades.
Embora distante da cidade, Cleo fazia-se presente com cartas e telefonemas. Dessa forma, conseguia participar dos principais acontecimentos ocorridos com a família e com amigos. Escrevia individualmente para cada um de nós, em frequente correspondência. Eu ficava encantada por receber aquelas cartas, por ele querer saber de minha vidinha, ao mesmo tempo que contava novidades de seu trabalho ou de peças e filmes a que assistira, sempre dizendo de diretores, produtores, atores.
Nos fins de semana em que estava em Uberaba, Cleo dividia sua atenção entre a Bernardo Guimarães e a casa da namorada. Muitas vezes, conjugando tudo, apareciam com algum jogo de tabuleiro, um “banco imobiliário” ou algo do tipo, e tanto insistiam que até meu pai acabava entrando na brincadeira. Tudo era alegria com ele por perto.
Cleômenes, sol luminoso para a família e para os amigos, igualmente o foi para a família da amada, em especial para o irmão mais novo, que necessitava de atenções especiais. O rapaz as tinha da família, mas do Cleo também as recebeu, aos borbotões, com sincera dedicação.
Cleo preservava alguns hábitos que não negavam a origem italiana. Era elegantíssimo! Que bom gosto para sapatos, gravatas e vestuário, desde os ternos alinhadíssimos às roupas esportivas arrojadas. Ademais, fazia questão de usar cremes de barbear importados, com aromas especiais. E, claro, muito apreciava a culinária de excelência, especialmente a italiana!
Quando eu faria 15 anos, Cleo me intimou a escolher um presente de aniversário. Então eu lhe disse: “Eu queria que você escolhesse para mim um perfume para ser 'o meu perfume', uma fragrância que seja a minha marca, da mesma forma que mamãe tem o 'perfume dela' (ela usava Cabochard)". Encantada, ganhei dele um Fleur de Rocaille, perfume que usei até o dia em que ele partiu deste plano. Dali em diante, seria impossível...
Cleômenes era extremamente popular entre os colegas. Naturalmente líder, com uma incrível capacidade de acolhimento, não media as pessoas por nenhuma baliza. Conseguia, assim, incluir nos grupos de que participava até aqueles com mais dificuldade de socialização. Amigo franco, sincero e leal em qualquer circunstância, ocupou lugar de presença indispensável na vida todos. Foi uma unanimidade entre todos os amigos com quem conviveu. É o que testemunham as tantas cartas enviadas a nós quando ele se foi.
Um episódio interessante que me ficou na memória. Evandro, ainda adolescente, certa vez em que ocorria uma reunião festiva de família, perguntou-me muito sério: “Bebel, se a família inteira – parentes de ambos os lados – tivesse de escolher apenas um, Cleo seria o preferido de todos, você não acha?”. Eu, tão criança ainda, nunca havia pensado em algo assim. Refleti muito e, por fim, lhe disse: "Bem, Evandro, se você tivesse de eleger apenas um entre todos da família, incluindo a mim, será que o Cleo não teria também o seu voto?”. E recordo-me das boas risadas que demos disso. Cleo era realmente unanimidade!
Os dois irmãos sempre se deram bem. Contudo, eram torcedores entusiasmados de times diferentes de futebol. Cada qual tinha lindas “flâmulas” das agremiações de preferência em seus respectivos quartos. Quanto aos times do Rio de Janeiro, lembro-me de que um torcia para o Flamengo, outro para o América. Nos dias de jogo, naquela época acompanhado pelo rádio, especialmente quando os times rivais se enfrentavam, os ânimos se exaltavam, o tumulto era grande! Durante muito tempo tentaram convencer a irmãzinha a torcer para seus respectivos times de escolha. Eu, que não tinha interesse em futebol, finalmente encontrei uma saída estratégica: disse que escolheria meu time pelas cores do uniforme. E optei pelo preto e branco de um terceiro time, saindo diplomaticamente da contenda.
No tal “futebol de botão”, brincadeira com a qual eles se divertiam muito na adolescência, competiam sempre como adversários implacáveis. Tratava-se de um jogo comum na ocasião. Um tabuleiro em cima de uma mesa, representando um campo de futebol. Cada participante jogava com 10 peças (botões com aproximadamente 6 cm) e mais o goleiro (um pouco maior). A bola devia ter pouco mais de 1 cm. Os botões eram acionados por uma palheta. Eu, pequena à época, ficava curiosa, querendo assistir ao jogo, todavia logo diziam: "Este jogo não é para meninas pequeninas, vá brincar no alpendre". Então, conformada, deixava os dois naquela algazarra e ia para "meus domínios".
Ambos entraram na juventude seguindo seus próprios caminhos, com ideais, sonhos e profissões diversas. Sem dúvida alguma, os dois tinham uma visão de mundo diferente, mas foram verdadeiramente amigos vida afora.
Tudo parecia fluir suavemente na tranquila previsão dos caminhos escolhidos pelo jovem Cleômenes para o futuro. No entanto, o destino tinha planos diversos.
Pedro Gondim Gomes de Matos era um comerciante extremamente bem-sucedido no Nordeste, com uma rede de lojas prestigiadas, a cobrir várias cidades, com propriedades e investimentos diversificados. Viúvo e sem filhos, encontrou-se de repente acometido de grave doença, logo houve por bem instar com Cleômenes, seu sobrinho e afilhado, para que abandonasse sua promissora carreira já encetada e passasse a residir na cidade-sede das empresas, tomando a frente dos seus negócios.
A insistência do tio residia na certeza da inteligência e competência do afilhado, no conhecimento de sua coragem e firmeza de caráter, de sua responsabilidade e empenho em tudo o que fazia, de seus valores cristãos sempre em prática. E sabia que, com o Cleômenes perto de si, teria apoio sem limites naquela fase difícil que enfrentava.
Cleo visitou o tio, tomou ciência da missão que se lhe apresentava, voltou e consultou sua noiva. Ela se entusiasmou. Aceitaram a proposta. Casaram-se e partiram para o Nordeste. A vida lhes sorria francamente.
Cleo incumbiu-se dos negócios com sabedoria e diligência, modernizando as atividades comerciais e dando ainda maior impulso aos empreendimentos. Sua presença parecia até conduzir o tio a melhores condições de saúde. Ao mesmo tempo, com sua cultura e oratória, seus ideais nobres, sua simpatia pessoal, Cleômenes tornou-se pessoa estimada e influente na pequena cidade baiana, vislumbrando-se para breve exitosa carreira política.
Depois de alguns anos, para completar a felicidade do casal, nasceu sua querida filha. Cleo, com toda aquela sua amorosidade, tornou-se o pai mais encantado, mais maravilhado do mundo! Nunca o vi tão feliz! E a nossa felicidade na Bernardo Guimarães também não era pouca com a chegada dela. Ele nos enviava cartas e retratinhos. Com uma maquininha de fotografar polaroid (grande novidade da época), o orgulhoso papai tirava fotos sem parar da linda pequenina.
Enfim, a vida parecia seguir mansamente seu curso. Mas, então, o cruel destino decidiu desferir um bote fatal: Cleômenes – 30 anos de idade – partiu desta existência.
Cleo, um sol em nossas vidas! Sim, um sol glorioso a iluminar todos que o circundavam. Nada lhe passava despercebido. Pressentia se alguém estava precisando de alento por alguma tristeza ou de alguma palavra de motivação. Sempre cuidadoso, nenhum evento relevante para a família ou amigos era negligenciado, nenhum aniversário era esquecido.
Era meu aniversário, 3 de setembro de 1975. À tarde, eu havia recebido um carinhoso telegrama do Cleo, que tenho comigo até hoje, dando-me parabéns pelo dia e dizendo-me que insistisse em sempre ser muito feliz. No entanto, de madrugada, um estranho telefonema. O tio, com voz embargada, noticiava um pesadelo real nas nossas vidas. Eu não conseguia acreditar no que ouvia... A partir daquela madrugada, como seguir o conselho contido no telegrama, como ser feliz sem aquele sol em nossas vidas? E as sombras mais se adensaram, no dia 14 de outubro daquele fatídico ano, quando meu adorado pai, nosso sol maior, também partiu.
Planeta Terra em 3D. Um mundo de provas. Sim! Difíceis experiências, em especial quanto às perdas. Sofremos muito, apesar da nossa fé espiritualista, que nos ensina que a morte não existe, que há apenas uma mudança de dimensão, que cada um tem seu plano de alma e, portanto, deve partir no momento aprazado, que nada ocorre fora dos planos divinos.
Mas é inevitável: sofremos e choramos pelos que partem. E sofremos e choramos também, e talvez ainda mais, por nós mesmos, quando percebemos que não teremos mais ao nosso lado quem tanta estima demonstrava por nós. Não obstante, a vida exige: é preciso continuar! Com a ajuda de Nossa Senhora, com fé em Cristo-Jesus, sobrevivemos ao luto e seguimos em frente, sabendo que é no cadinho dos percalços que nós, fractais, apuramos nosso espírito.
Cleômenes: um herói da vida comum. Assim um de seus amigos o descreveu em carta a mim enviada após sua partida. Com efeito, Cleo foi um homem de caráter firme, de princípios inabaláveis, uma alma nobre, um valoroso cristão imerso na vida comum.
Quando leio sobre a transição planetária em andamento, sobre a futura Terra em quinta dimensão, imagino que todos os seres humanos serão de alguma forma parecidos com Cleômenes. Em vez de competição, cooperação. Amorosidade sempre, compaixão sempre, disponibilidade e generosidade espontâneas, sem esperar retribuição. Mestre Jesus como norte. Viver o presente, em frequências de alegria, de leveza e de gratidão pela vida, transformando cada instante de rotina em momento especial, enxergando cada dia como um lindo milagre, sempre vislumbrando o que é elevado e permanente.
Se os anjos me permitissem enviar uma mensagem ao Cleômenes, eu diria de minha gratidão pelo período em que estivemos juntos em família na Bernardo Guimarães. Você, Cleo, iluminou muitas vidas, mas especialmente o meu caminho, sendo exemplo a me instigar a tentar ser melhor, a buscar quem sabe um dia alcançar o nível de humanidade superior que era tão natural e inerente a você.
Ouso dizer ainda que, embora por apenas alguns meses de presença física, aqui na 3D, junto dela, tenho convicção de que você inspirou e continua a inspirar a vida de sua filha, que herdou
tantas de suas nobres qualidades, além de reverberar eflúvios de bênçãos também a seu genro, rapaz de real valor. Formam eles um casal que, em amor e harmonia, irradia positivas energias.
Cleômenes, estrela resplandecente, onde estiver, está abrindo estradas de luz, a iluminar almas e corações na direção do Bem Maior.
