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CRENDICE OU FÉ? – Santino Gomes de Matos

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 17 de jul. de 2022
  • 5 min de leitura

Atualizado: 14 de out. de 2022

Arriara-nos de cansaço, o sol de oito léguas bem puxadas, naquele dia de verão.


O Zé Brasil recebeu-nos no alpendre, com a mão estendida sobre os olhos piscos, furtando-os a uns restos de luz da tarde que declinava.

– Desapeiem moços.


Num retinir de esporos, desabotoando os guarda-mãos de couro, viemos cumprimentar o velho, enquanto os cavalos já iam, por conta de um serviço, ao peieiro.


Viéramos duma assentada desde o Serrote Redondo e trazíamos fome negra. Léguas medidas pelo diabo, piores que léguas de beiço. E aqueles capoeirões interminos, sem sombra de folhagem, com árvores baixas, retorcidas, careteando esgares, jungidas à terra, escravizadas nas suas linhas tortuosas, como se lhes pesassem cadeias em cada galho.


O cenário imutável. Um vento rasteiro, que se feria nos cactos e trazia o mormaço da terra gretada, sedenta, donde se levantava em vapores, em tênues véus fulvos, tremendo, dançando à vista.


O sol encandeava. E ainda li, na fresca do alpendre, reluziam pontinhos luminosos diante dos meus olhos, quando os fitava em qualquer coisa.

– Esteja a gosto; a janta não tarda.


Cordialíssima hospitalidade. Nisso fazem timbre os sertanejos. Comemos à tripa forra.

– O homem aqui é de barriga cheia – disse-me o arrieiro no intervalo de duas colheradas – mas, se lhe dá na telha de contar histórias, Deus nos acuda! T'esconjuro! Não puxe por ele, patrão, não lhe dê cabimento, senão ainda sairemos amanhã, com cara de hoje.


Tinha razão o Cafubá. Até alta noite aguentamos com o pigarrear seco de uma bronquite crônica, ouvindo ao dono da casa intermináveis histórias, a respeito de tudo, cm relação a nada.


As pálpebras já me pesavam como chumbo. O sono acabaria por vencer-me a heroica tensão de espírito que mantinha. Mais de uma feita, passeara de mãos pelas costas, bocejando à lua que se encobria num leve véu de gaze, pudicamente.


Do brejo próximo, vinha o coro das rãs. E o tim-tim de um grilo bigornava insistente, no desvão talvez da rústica janela.


As formas anafadas de uma mulher emolduraram-se no retângulo da porta. Ouvi depois o roçar de uma chinela, raspando de leve o chão e a um "tac" seco e rude, o grilo calou-se.


O Zé Brasil chipitava, de grosso cigarro de palha, baforadas fortes, que soltava em novelos, derreando a cabeça.

– Ora, veja o senhor.


Voltei ao meu pesadelo. E o velho:

– Foi a Sinhara que veio dar caça ao grilo. São favas contadas. Roçou a chiela perto dele, o bicho vem se entregar.


Busquei pé para uma discussão, que me salvasse da grane falta de adormecer, quando toda a atenção me era requerida. Duvidei. Casualidade sem dúvida. Que influência havia de ter aquilo, sobre o grilo?

– Saber, não sei mesmo não, mas que assim é, lá isso é "seu' moço. Acontece cada uma, neste mundo de meu Deus, que deixa a gente de queixo caído. E ninguém sabe o porquê. Nem "adevogado" será capaz de explicar, com toda a sabença. Eu lhe conto "seu" moço, eu lhe conto. Faz muito tempo. E voltando-se para dentro:


– Quantos anos tem o "Reimundo", Sinhara?


A mulher não respondeu. Invejei-lhe a sorte de estar ferrada num bom sono, sob a guarda dos anjos. Não estava: daí a pouco apareceu. O velho entrara pela história.


Ia-lhe grande aflição e casa. Comadre Thomazia que trouxera à garupa, dois dias antes, quase desesperava de lhe salvar a mulher. E ninguém gozava de melhor conceito como parteira. Era velha no ofício e dava quináu até nos doutores formados, dito mesmo pelo boticário Arnaldo, da vila da Traíras. Mas, desta vez, torcia a orelha e não minava sangue. O caso está grave.


O Cafubá, estendido sobre o pelego, espreguiçou-se num "ah" demorado.

– Cabra perrengue, dorme com as galinhas, gracejou o Zé Brasil.

E continuando:

– Não há mais jeito compadre; é cuidar do luto e do caixão. Pode se considerar viúvo.


Quando ouvi isso, fiquei num desgoverno. Mas comadre de minh'alma, será possível – gritava, doido de agonia, com as mãos na cabeça, gemendo, porta dentro e porta fora.

Quando o homem me saudou, mostrei-lhe o rosto banhado de lágrimas. Tratei de despedi-lo. Não podia dar rancho com a mulher no estado em que estava, só faltando expirar. Insistiu. Casa, só com cinco léguas de distância poderia encontrar e era já noite fechada. E como outra vez lhe negasse:

– Ainda que mal pergunte que tem sua mulher?


Cobrei um pouco de esperança. Quem sabe seria o mandado de Nossa Senhora do Bom Parto? As velas continuavam a arder, no oratório. Em terra foi que o viajante acabou de me ouvir.

– Se é só isso, ponho-a boa em três tempos.


Não tugi, nem mugi. Deixei-o entrar e segui-o como se ele fosse agora o dono de tudo. Garatujou num pedaço de papel, pediu um bento de irmandade, dobrou-o com a oração dentro, costurando-o. E à comadre Thomasia:

– Coloque no pescoço dela e pode cuidar da ceia.


O moço não conhece o Reimundo, uma tora de homem deste tamanho, que é vaqueiro nos Dois Corgos. Nasceu nessa noite.


Vi se descobria uns cotocos de asas nos ombros do viajante, desconfiado que fosse o arcanjo São Miguel. Em seguida lembrei-me que podia ser artes do maldito e nunca mais lhe larguei de vista os calcanhares com o dedo armado para o sinal da cruz.


Contou-me tudo à hora da ceia. Fora uma cigana quem dera aquela oração à sua tataravó e nunca mais lhe morrera ninguém de parto na família.

– Quantos anos tem o Reimundo?

– Anda beirando os vinte, respondeu a mulher. Depois dele, ainda tive seis filhos, sem nem dor de cabeça


O velho retomou a palavra:

– Uma bondade "seu" moço, uma riqueza de oração. Comadre Tomazia, que Deus guarde em sua glória, só atendia com ela do lado. E até de nove, dez léguas de distância, vem gente buscá-la. Nunca falhou. Parece mentira. Quando peru e capão gordo não temos ganho "pru via" dela.


Fiquei curioso. Pedi que me mostrasse, tão milagrosa que era assim. O velho teve um risinho de triunfo e levantando-se:

– Aí é que bate o ponto. Não "iséste" quem arranque o "nicificado" da cousa. Eu não, que sou um pobre bruto. Mas tenho esbarrado muita gente estudada com o "papé" do homem. Deixe ver se me "alembra".


Como foi Sinhara que o "Zé Migué" falou? "Oropa!", língua das "oropia", acho que foi. Embatucou bonito. E é bicho pra bicho, na conta e na escrita, troca palavra "inté" com o inspetor de quarteirão. Mas se o moço quer ver...


A mulher retirou dentre as medalhas, no pescoço, um bentinho velho e puído, do uso e do suor. Descoseram-no. E à luz da lamparina, que a velha segurava, pude antes adivinhar do que ler, em caracteres quase extintos, num papelzinho amarelado:

"Passando bem eu e meu cavalo, pouco me importa que a mulher morra ou não."

As letras estavam em ordem invertida. Escusado dizer que também fiquei "esbarrado". O velho contou mais uma vitória em abono dos perus e dos capões gordos. E a oração continuaria de casa em casa, de pescoço em pescoço, alimentando a crença dos supersticiosos. Ou seria tudo efeito da força da fé, daquela fé que move montanhas?


Resolvi partir. A barra vinha quebrando, festejada dos quero-queros, nas samambaias.


Conto do livro Flagrantes ao Sol do Norte, publicado em 1929.

 
 
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