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DA VERACIDADE DA VERDADE

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 20 de out. de 2022
  • 4 min de leitura

Atualizado: 28 de set. de 2024

Crônica de Yone Passaglia Gomes de Matos, publicada no jornal Degrau em julho de 2001.



Em viagem por longínquas galáxias, o Observador estelar dirigiu suas lentes para o planeta Terra.


Fazia algum tempo que não o observava – cerca de 50 anos, se contasse o tempo pelo calendário ali vigente. Como estariam vivendo aqueles interessantes bípedes chamados homens?


Ao primeiro olhar, percebeu intensa movimentação. Veículos de toda espécie circulam na terra, nas águas e no ar. O progresso era visível. Tinham conseguido até lançar satélites orbitais. Detendo sua observação nos laboratórios astronômicos, inteirou-se da notícia de uma sonda automática que deverá pousar num asteroide primitivo que se acha entre Marte e Júpiter para recolher amostras de rochas. O estudo desses fragmentos possibilitará desvendar o enigma da origem da Terra e do sistema Solar e o conhecimento da essência dos ingredientes que deram origem à vida.


Apesar disso, notou que o homens ainda escavam o solo em busca de riquezas minerais. Escavam também o fundo dos oceanos em busca de petróleo.


Mas o que é isso? Como puderam modificar tanto o perfil do globo! Explodiram montanhas, derrubaram florestas e criaram desertos. Desviaram o curso de rios. Promoveram hecatombes.


Ele estava muito impressionado. Ainda mais impressionado ficou quando passou a observar individualmente os habitantes do planeta. Aqueles que sempre se intitularam "reis do Universo", continuam caminhando envoltos na fumaça do orgulho, da cobiça e da vaidade.


"Vanitas, vanitatum et omina vanitas", resmungou o Observador, relembrando o sábio Salomão.


Quis verificar se estavam felizes com tanta glória.

– Não! Parece que nada lhes basta. Querem mais... Ah! Falta-lhes o título supremo do criador.


Observou com assombro como estão empenhados nessa tarefa, tomando como ponte de partida a "clonagem". Constatou, com tristeza, que pretendem, para breve, completar a obra de criação de seres perfeitos ou monstruosos, conforme o gosto do comprador.


A curiosidade do Observador era muito grande. Por isso, resolveu acompanhar "in loco" o dia a dia do planeta. Em que ponto desceria?


Decidiu-se por um aprazível país tropical, que apresenta imensas reservas hidrográficas e terras férteis. Desceu em uma cidade que, do alto, parecia um aeroplano iluminado. Entrou numa loja, tirou da vitrine um terno masculino bem talhado e, num instante, transformou-se num elegante cavalheiro. Deixou a loja sorridente com a confusão causada entre vendedores pelo desaparecimento inexplicável da roupa. Começou a andar pela rua


Parou numa esquina onde um "telão" mostrava os últimos acontecimentos do dia. O que viu deixou-o perplexo: cenas dantescas de violência e morte; lutas armadas; jovens com bombas amarradas ao corpo, fazendo-as explodiram junto a aglomerações; cidadãos matando e morrendo por pátrias perdidas ou em nome de um "deus" implacável; populações inteiras morrendo de fome; doenças dizimando vidas... E, finamente, propagandas de bebida, cigarro e muito sexo.


Desviou os olhos da tela, estarrecido. Dirigiu o olhar para os transeuntes, apressados Todos carrancudos. Nenhuma saudação, nenhum sinal de alegria. Ambulâncias buzinavam. Carros de policiais armados perseguindo assaltantes.


Cada vez mais confuso, não conseguia compreender a contradição entre o progresso material que o mundo alcançara nos últimos 50 anos e o mau uso de tudo que conquistara.


Como há fome numa terra tão dadivosa, que "em se plantado tudo dá"? Por que os homens têm que matar uns aos outros?


Uma era da "comunicação" em que as pessoas deixaram de se entender...


Andou por muitos lugares. Interrogava a quem encontrava. Todos olhavam-no como se louco fosse. Finalmente, houve alguém que lhe deu a devida atenção. Um ancião sábio e compenetrado que lhe disse:


– Tudo começou quando os valores tradicionais foram sendo desprezados como inúteis e obsoletos: honestidade, civismo, compromisso, fidelidade, respeito e dignidade. E já não há mais como recuperar o que perdemos.


O estudioso estelar comoveu-se e, embora devesse apenas observar, decidiu que precisava tentar ajudar aquelas pobres criaturas a reencontrar o caminho de volta à sensatez e à felicidade. Dizendo isso ao ancião com quem conversava, este resolveu levá-lo a um local onde os eleitos estavam reunidos. Estavam em acirrada discussão. Pareciam inquisidores. O mais exaltado bradava:

– Havemos de extrair-lhes a verdade, se for preciso com indagações capciosas e o massacre das perguntas repetidas à exaustão. O detector de mentiras é inútil. Ja temos certeza de que eles mentem. Mas que faremos se não disserem o que queremos ouvir?


Outro orador gritou:

– Vamos derrubá-los sumariamente.


O Observador Estelar perguntou ao ancião:

– Que fizeram esses homens de tão grave? Mataram, roubaram, corromperam?

– Não. Esses crime são banais por aqui Pouca atenção se lhes dá. O que aconteceu foi o seguinte: Toda gente começou a afirmar que os aparelhos de comunicação de última geração não eram confiáveis. Os acusados obtiveram essa confirmação. E vão ser "derrubados".


– Não entendi a motivação disso!

Então, com a paciência que só os velhos possuem, explicou o ancião ao Observador:

– O que eles estão fazendo é derrubar ídolos. É o novo esporte nacional. Estão derrubando os ídolos antigos e novos, vivos ou mortos.

– Mas por que isso?

– Por que interessa a outros povos que acreditemos que não somos capazes, que não temos qualidades morais para conduzirmos o País. Será a melhor forma de nos dominarem por completo.


O Observador despediu-se do ancião, já desacreditando na possibilidade de ajudar aquela gente.


Andando novamente pela rua, resolveu entrar numa loja, onde havia intenso movimento. Os empregados derrubavam medicamentos das prateleiras. Era uma limpeza geral

– O que estão fazendo?


Tiramos os medicamentos da prateleira. Vão ser jogados fora. Queremos a verdade! Vê esse medicamento que há mais de cem anos as mães usam para fortificar crianças. É fato que aquelas crianças cresceram fortes e sadias. Mas agora afirmam que é um remédio mentiroso. Veja este outro. Tem curado a dor faz dezenas de anos de milhares de pessoas. Mas agora é falso. Abaixo os ídolos. Queremos as novas verdades!


Estavam nisso quando as luzes piscaram. Era o apagão..


– O que está havendo? - perguntou afito o Observador Estelar.

– O sr. veio e onde, hein? De Martee? Todos sabem que as usinas hidrelétricas estão "pifando"!

– Mas como? E os espetaculares recursos hídricos que existem por aqui?

– O sr. parece de outro planeta. Não acompanha o que está acontecendo? O dinheiro público teve outros destinos.


O Observador Estelar não quis saber de mais nada. Pensou:

– Pra mim chega!


Ajudá-los está acima de minhas forças. Escuro por escuro, prefiro o espaço sideral...


Desfez-se da incômoda carapaça humana e, rapidamente, alçou voo rumo às estrelas.






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