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DIOMIRA RICCIOPPO ANGEROSA

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 22 de mar. de 2024
  • 7 min de leitura

Atualizado: 11 de out. de 2024


"A gramática, esse inferno divertido!


Há dedicatórias que resumem um tempo da vida da gente, contam, numa frase, uma longa história e, partindo de um velho Mestre, trinta e cinco anos depois do nosso convívio, que, afinal, foi curto, chegam como uma explosão luminosa que anulam o tempo e a menina ressurge, limpa de dores e mágoas do caminho.


E creio mesmo que, além de minhas filhas e meus netos – só vai ficar de mim o tesouro bíblico daquelas palavras de Mestre Santino. Mais que tudo que de rico lhes deixasse, só vai realmente ficar de mim a frase escrita pelo professor. Uma única frase: – água viva, destilada no tempo, filtrada na saudade e na ausência de contatos pessoais – é a palma, pura, amadurecida num coração de Mestre e havia de ser minha essa palavra.


Não são merecidas, confesso humildemente. Teria se enganado o querido Mestre? Mas eu sinto que herdei dele a honestidade de uma visão retilínea, ligeiramente irônica, apanhada no ar da sala de aula, um descompromisso com tudo que não fosse racional e lógico, uma tendência brandamente crítica de ver a História contada no nosso tempo, sem o hipotético apoio da sociologia e embrulhada nos chavões floridos do ufanismo, o gosto pela contestação, remoída na engrenagem ainda frágil de minha idade, quase infantil ainda, no sabor pela crítica franca, desassombrada, audaciosa – que lá pelos idos de 38 ou 40 me marcavam como insubordinada, rebelde, uma espécie de 'menina-problema' para a família e a escola. Meu Mestre era, além de redator do 'Lavoura e Comércio' de Uberaba, do poeta, do cronista, do crítico mordaz e elegante, era então o Diretor do Colégio, e ainda mais, a soma tudo que ali faltava, a alma fecunda daquela casa, o calor, a compreensão, o substituto eventual e pronto de qualquer cadeira – e como eu me enriquecia naquele dia! – e especialmente o nosso professor de latim e de literatura.


Lá um dia, por razões que me fogem à memória, apareceu-nos como professor de português um tal João, absolutamente míope, tão míope quanto eu gostaria de lhe dizer! – e nos mandou fazer uma interpretação da fábula da cigarra e da formiga. Ah! Eu não podia deixar passar tão bela oportunidade de contestação, de rebeldia, aos cânones do tempo, derrubar, escandalosamente o preconceito cristalino e secular de La Fontaine! Esse cara 'já era', devia ter pensado eu...


E a minha formiga era egoísta, avarenta, agressiva, cruel, devastadora, usurária, cega e surda à beleza da vida, enquanto a cigarra, que nos prenunciava as férias e era o encanto das minhas tardes entre as mangueiras do nosso quintal, a cigarra era a poesia, a vida livre e cantada, as asas frágeis e transparentes de sono que ia durar pouco, mas deixava o crepúsculo musicado e talvez morresse com ele, estourando de felicidade e prazer. O ar parado e quente de novembro ficava vibrando no lusco-fusco do entardecer como se a lua, nascendo, fosse feita de luz e som... Enquanto a formiga era subterrânea, a outra era o lirismo fugidio e leviano de um momento de amor e doação sem recompensa. Era a doidivana sem pouso, ébria de verão, cantadeira noturna – quanto de certeza de vida passageira, o voo tonto e o assobio irônico ficados no ar...


Ó suprema subversão extravagante da ordem preestabelecida. O míope João, na leitura dos trabalhos, na classe – como me lembro bem! – me chamou de panfletária (coisa que eu nem sabia o que era) , carente de bom-senso, de senso comum, de lógica – assim feito uma 'fora de órbita', que naturalmente ele não usaria nunca, porque não cabia, naquele termo, o sentido exato do ex-orbitante... E como eu me vingava deles! De um professor perdigoto, eu assistia às aulas com o guarda-chuva aberto, descaradamente. Do velho zelador, que morava no porão do edifício quase centenário (criava galinhas e gatos), eu lhe roubava os ovos e pendurava o gatinho novo no pendente da lâmpada da sala de aula e deixava-o balançando, aos berros e miados, na hora exata da entrada daquele outro míope, professor moço ainda, que não admitia perguntas e era só eu abrir a boca e ele apontava a porta da sala.


Mas o meu verdadeiro mestre era diferente. Ele, querido, amado diretor, rondando os corredores, me encontrava encostada na parede, do lado de fora, cara de sonsa e nos sorríamos, num entendimento mútuo. E como doía aquele sorriso de compreensão. Doía tanto que eu só pensavam numa próxima vingança contra os míopes – o diabo é que eu nunca me prometia emendar.


Sempre ele, marcando a minha alma com seus poemas, o meu caráter com suas crônicas, alimentando as minhas tendências "pra-frente", dando forma à minha visão das coisas e dos fatos – penso mesmo que como que, porque eu me identificasse tanto com ele, que lhe adivinhava os conceitos e ideias, eu estava "sintonizada na faixa dele". Eu me sentia gente nas aulas do Prof. Santino, porque ele me via e eu lhe bebia as palavras, pronunciadas abertas, na boca do nortista, decorava suas expressões fortes, a linguagem rica, sonora, escorreita e imitava-lhe até o sotaque, vibrante – era uma satisfação ouvi-lo.


Pois foi num 15 de novembro de 36 ou 39 que eu apareço no colégio, uniforme engomado, cabelo frisado com ferro quente e o discurso prontinho, escrito com letras bem claras, em longas folhas estreitas, aparadas, numeradas – eu tinha sido escolhida para falar sobre a Proclamação da República na Câmara Municipal. E, naturalmente, eu havia escrito o discurso do jeito que queria... "Era uma grandissíssima deslealdade trair e banir um Imperador que havia dado ao Brasil o seu tempo áureo, o desenvolvimento da agricultura, os primeiros bancos e sociedades anônimas – e saía por aí afora lembrando a todos 'a vinda dos primeiros imigrantes, preparando-se já a Abolição, para não desguarnecer a agricultura' – e devia ser enfática – 'nunca mais o valor da exportação foi maior que o da importação, como no segundo império' – e gritaria por Mauá, a primeira estrada de ferro da América do Sul, a navegação fluvial, a organização dos correios, a introdução do selo postal, e Mariano Procópio, abrindo estrada serra acima até Minas Gerais, e o desenvolvimento da cultura e das ciências. Estavam lá, bem grifados, os nomes que enriqueceram a Literatura. E o Mecenas conduzindo Carlos Gomes para as asas da imortalidade – isso não poderia faltar – e Vítor Meireles, Pedro Américo, Almeida Júnior e patati e patatá... E nada de proclamação da república, porque, um dia, eu senti que o Mestre a tinha achado 'prematura'.


Já se formavam os alunos na rua para a parada festiva diante da Câmara, quando alguém teve a ideia (só podia ser o míope João ) de ler o meu maço, tão bem enroladinho, talvez para alguma correção dos "excelentíssimos, ilustríssimos, reverendíssimos" ou acertar a numeração das páginas – sabe-se lá – e foi aquele desastre. Estava ali a "panfletária", a subversiva (será que usavam esta palavra?) E só de imaginar o fim que deram ao meu discurso, tão pensado, tão honesto, tão leal, tão pesquisado. E haveria eu de ler uma porcaria qualquer, feita às pressas? Mas o cabelo já estava frisado, o sapato de verniz brilhando, o uniforme duro de engomado e eu não tive outro remédio. Mas eu me lembro que ele me sorriu ternamente quando, chamado, se inteirou da 'tragédia'. E foi só por esse sorriso que eu li o discurso que não escrevi.


Leio e releio a dedicatória do livro Inferno Divertido da Análise Sintática. Chega a ser uma satisfação vaidosa, vontade de mostrar para todo mundo – mas não será que na verdade fiquei assim lembrada, por ter sido aquela ovelha teimosa pela qual o bom pastor abandonou todo o rebanho para ir buscá-la, meu caro professor Santino Gomes de Matos?


Folheio as primeiras páginas do livro. São justificativas do seu tema – como se isso fosse preciso! 'Hoje ninguém mais deve ensinar a análise pela análise. Quanto menos análise melhor: mais tempo sobra para aprender a língua!', concorda com o Professor Santino o professor Jamil El Jaick em 'Roteiro de Português, pág. 139'. E Silveira Bueno (Gramática Normativa, pág. VIII): 'Qual foi o seu maior martírio nas aulas de português? A resposta não poderia deixar de ser a mesma: o meu maior martírio, quando estudante, foi a análise lógica." (...) E Lauro de Oliveira Lima (Escola do Futuro - pág. 107): 'Os Lusíadas, nós reduzimos nosso poema a um instrumento de inquisição mental.' (...)


E, ouvindo a voz do meu mestre – quanto tempo passado! – as palavras ficam grandes na sua expressão, feitas em sílabas sonoras, as frases melodiosas, num exato compasso de verso livre, vou lendo, devagar, para usufruir ao máximo, daquela mesma ironia sutil que não envelheceu, antes se apurou e requintou, daquela construção maliciosa que termina quase com ternura piedosa. Penso que é preciso conhecer o livro, principalmente nós, velhos supliciados que fomos na 'roda' de Camões...


Logo de começo ele nos anima e já nos vence, atenuando a nossa má vontade contra a análise sintática, prometendo-nos: 'Devassada, porém, desvestida do manto de falsa ciência em que costuma envolvê-la, para engano de tanta gente e terror pânico dos alunos de português, adquire aspectos de caricatura, faz rir, torna-se pitorescamente divertida, quase cômica!' (Inferno Divertido da Análise Sintática – Imprensa Oficial – 1974)."

Artigo publicado no jornal "Estado de Minas" em 15 de janeiro de 1975

"Professor Gomes de Matos, mestre caríssimo de quem sou sempre devedora.


Só o tempo pode fornecer os elementos que completam uma impressão de adolescência. A princípio, tudo é apenas espírito de imitação, influência de mestre, vaidade de privilegiado que convive com valores. Mais tarde, a gente começa a ajuizar e valorar a direção que, sem perceber, esses mesmos valores deram à nossa vida interior e observa que o entusiasmo é o mesmo, a admiração e o respeito ainda estão vivos.

(...)

Alegra-me pensar que os dois primeiros poemas meus , transcritos em letras de forma, eu os dedico a Santino Gomes de Matos e a Geraldo Rodrigues – e só deles eu respeito a correção e a crítica, porque sou parte do mundo que eles inventaram.


Cordialmente,

Diomira Ricciopo Angerosa"


Carta de Diomira Ricciopo Angerosa a Santino Gomes de Matos em 16 de janeiro de 1960

Diomira Riccioppo Angerosa, contista, autora do livro "Tempo de Respigar"



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