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Duas bibliotecas? Maria Isabel Gomes de Matos

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 10 de ago. de 2024
  • 6 min de leitura

Atualizado: 13 de abr.




Estávamos na segunda metade da década de 1960. Eu teria 11 anos de idade. Naquela época, a infância era de certa forma mais longa. Afinal, não havia uma imposição cultural de adolescer antes do tempo.  

 

Naqueles anos dourados, as crianças eram cobradas a estudar com afinco e deviam atender a certas responsabilidades em casa desde cedo – cada qual de acordo com as disposições de suas famílias –, mas, por outro lado, usufruíam de uma liberdade de brincar inimaginável para as gerações seguintes.

 

Às 18 horas – como era lindo aquilo! – a igreja de Santa Terezinha, com possantes alto-falantes, inundava a cidade com o som da Ave Maria. Na rotina de nossa casa, na "Hora da Angelus", um momento especial de oração. Quando era possível, subíamos ao terraço, onde havia confortáveis cadeiras e de onde tínhamos uma vista de quase toda a cidade e podíamos apreciar as sete colinas, iluminadas pelo entardecer em Uberaba – cidade com o pôr de sol mais belo do mundo! Depois disso, descíamos para jantar.

 

Havia uma recomendação de que, sempre que possível, toda a família estivesse reunida para o jantar: mesa posta, travessas e flores. Além da comida deliciosa, era um momento leve e alegre, e meus irmãos, já rapazes, de bom grado, frequentemente atendiam a esse chamado. Terminado o jantar, meus irmãos saíam para encontrar os amigos, para estudar, para visitar suas namoradas ou para algum evento social; meu pai descia para ministrar aulas; minha mãe ia lidar com seus crochês e bordados e eu estava autorizada a sair para brincar.

 

Todos os meninos da vizinhança reuniam-se nesse horário: a turma da Bernardo Guimarães e a turma da Ladeira. Até os cachorrinhos da Ledinha e do João Honório, Rubi e Joli, vinham participar da folia. Brincávamos de “amarelinha”, de pular corda, de “pique de esconder”, de “passar anel”. E jogávamos “queimada”, sempre alternando os integrantes de cada time, ora por sorteio, ora por uma competição prévia no “jogo das cinco pedrinhas”.

 

Não havia qualquer perigo, mas as mães, em vigilância não ostensiva, eram atentas.  Em determinado momento, uma delas chegava à janela e nos chamava, indicando que era hora de irmos para nossas casas. Nos dispersávamos, obedientes.

 

Enquanto brincávamos, lá em casa funcionava a sala de aula, que tinha entrada na descida da Ladeira. Na verdade, ali era uma garagem, cujo espaço fora adaptado à nova finalidade. Afinal, o reluzente DKV-Vemag, recém-adquirido na concessionária do amigo Paulinho Válio, podia ficar estacionado à porta sem perigo de danos. Tempos seguros e tranquilos...

 

O amplo local era adequado, pois, além do salão, havia ali mais dois cômodos, transformados em confortáveis banheiros. Realizada a reforma, com a troca do portão por uma porta de correr com vitraux, foram instalados o quadro com giz, grandes ventiladores, longas “luzes frias” (novidade na época), uma mesa com cadeira para o professor e 30 confortáveis carteiras individuais. A parede do fundo recebeu, em toda sua extensão, um armário fechado, com portas de correr. Esse grande armário fazia-se necessário, uma vez que a biblioteca não comportava mais livros, com muitas das estantes já com prateleiras repletas em duas camadas.

 

Foram transferidos para o armário da sala de aula as brochuras de literatura e os compêndios didáticos. Editoras diversas do País encaminhavam a meu pai exemplares de novos livros didáticos, solicitando sua judiciosa opinião, uma vez que, como autoridade reconhecida, caso houvesse sua palavra positiva, esta poderia ser um elemento a mais na decisão de serem adotados pelos colégios. Isso gerava um volume ainda maior de publicações a serem guardadas.

 

A garagem, agora transformada em sala de aula, comunicava-se com a parte interna da casa. Havia uma escada, que descia desde a cozinha, mas que não era percebida do salão. Certo dia, curiosa com aquelas aulas, em vez de ir brincar, desci os degraus da cozinha sem fazer barulho e sentei-me ali, onde podia tudo ouvir e não ser vista.

 

Prestei atenção às falas do professor e percebi que meu pai estava ensinando gramática.  Fiquei interessada: achei que talvez pudesse aprender aquilo de forma diferente, porque ouvia os alunos rirem muito, pareceu-me que aprendiam se divertindo. (E era isso mesmo, como depois comprovei, vivenciando a didática peculiar do professor Santino.)

 

Então, tomei uma decisão!  Arranjei um caderninho, lápis e borracha, e passei a me esconder ali todos os dias, com minha boneca predileta, para escutar a aula de português.  Entretanto, pouco tempo se passou até que minha mãe desse por minha falta junto à meninada e me encontrasse ali. Perguntou-me o que fazia, sozinha, sentadinha no último degrau da escada. Mostrei-lhe o caderno: meu segredo havia sido descoberto...

 

No dia seguinte, meu pai me chamou. 

– Maria Isabel, quero falar com você!

Vich...  Com certeza estava encrencada.  Habitualmente meus pais me chamavam de Bebel...

– Maria Isabel, você está ouvindo minhas aulas, escondida na escada?

– Só as de gramática, papai...  O restante nada entendo e não tenho interesse.

– Deixe-me ver o caderno!

 

Minutos que duraram horas...  Leu as anotações e sentenciou que, diante de minha vontade de aprender, ele deixaria que eu assistisse às aulas de português sentada na última carteira, no fundo da sala de aula, sob três condições. A primeira: eu não poderia fazer qualquer pergunta ou comentário, deveria anotar minhas dúvidas, a serem depois dirimidas com ele. A segunda: eu faria a experiência e, caso gostasse e quisesse continuar participando das aulas, teria de fazer, sem prejuízo de meus deveres de casa do colégio, os mesmos exercícios que ele destinava aos alunos. A terceira: não deveria comentar com os amiguinhos de brincadeiras. (Realmente, se eu comentasse, boa parte dos meninos era capaz de querer experimentar a novidade ou, no mínimo, ficar aboletados, curiosos, nos vitraux.)

 

Daquele dia em diante, passei a assistir às aulas de português. Depois, subia para brincar. Aqueles rapazes e moças, que se preparavam para o vestibular de Direito ou para o concurso do Banco do Brasil (à época, considerado um dos melhores empregos disponíveis), imagino que até ficavam mais animados com o estudo, quando viam aquela menina de trança, quietinha e atenta, com sua boneca, procurando anotar as explicações do professor. As apostilas preparadas para aqueles cursos, que recebi como um troféu, guardo-as até hoje como relíquias preciosas. Que privilégio para mim! Segui adolescência afora, como aluna de português do professor Santino, o que orientou meu destino profissional futuro.

 

Encerradas todas as aulas na garagem-sala de aula, meu pai subia para a biblioteca da Bernardo Guimarães. Nesse horário, eu já deixara as brincadeiras e ali estava pontualmente. Ele chegava, sempre com seu proverbial bom humor. Corrigia meus exercícios e respondia a todas as minhas dúvidas. Só na maturidade pude avaliar na medida certa a imensidão de sua paciência e generosidade comigo.

 

Ao rememorar esses fatos, não há também como não refletir como pertenci a uma geração que foi conduzida, em termos culturais e familiares, a uma infância saudável. Fomos crianças alegres, sociáveis, sempre prontas a brincar, mas também entendíamos o estudo como algo valioso, uma conquista, jamais uma penalização.

 

Aguardando que meu pai chegasse, às vezes eu ficava a observar aquele oceano de livros da Biblioteca da Bernardo Guimarães.  Os volumes que não possuíam originalmente "capa dura" eram mandados para encadernação. As cores (preto, marrom, bege, verde escuro ou cor de vinho) surgiam a livre critério do encadernador. Certa vez, como boa virginiana, lancei a ideia de que fossem ordenados por cor – sugestão imediatamente descartada!

 

Descobri, naquela situação, duas realidades interessantes. A primeira, que os livros ganhavam seu lugar por ordem de assunto e que meu pai conhecia cada exemplar, conseguindo localizá-lo mesmo estando longe da biblioteca: sabia a cor da capa bem como em que estante e prateleira residiam. A segunda, que as obras eram todas originais: havia livros em espanhol, italiano, francês, inglês e alemão, idiomas que meu pai dominava totalmente. Ao perguntar como esses livros estrangeiros chegavam à biblioteca, fiquei sabendo que vinham diretamente de livrarias da Europa e dos Estados Unidos.

 

Para mim – talvez por influência das histórias do Sítio do Pica-pau Amarelo, com bonecas e bichos falantes passeando na "terra da gramática", com pó de pirlimpimpim capaz de permitir viagens ao céu – aqueles habitantes que chegavam à biblioteca da Bernardo Guimarães vindos de tão longe, e que recebiam seu "título de cidadania" por meio daquelas bonitas letras douradas inscritas nas novas capas coloridas, vinham revestidos de certa aura de nobreza, que conspirava para o etéreo clima de magia que ali reinava.

 

 

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