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ERA UMA VEZ ...

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 15 de out. de 2022
  • 7 min de leitura

Atualizado: 30 de jan. de 2024

Artigo de Yone Passaglia Gomes de Matos, publicado no jornal Degrau em dezembro de 2003.


Era uma vez um reino pequenino, engastado na extremidade de um continente. Era habitado por uma gente valorosa e audaz.


Como não pudessem alargar suas fronteiras no território, avançavam mar adentro com seus navios, para a conquista de outras terras. Nada os detinha: nem os perigos do imenso oceano, nem as guerras que deveriam enfrentar. E, assim, conseguiram alargar os domínios do pequenino reino, tornando-o conhecido e admirado em todas as partes do mundo.


Mas isso não lhes bastava. Desejavam muito mais. Queriam realizar o sonho da conquista do lendário eldorado: terra dadivosa, onde o ouro aflorava ao alcance das mãos e os diamantes dormiam no leito dos rios de águas transparentes. Mas, para isso, teriam de enfrentar maiores perigos. Deveriam seguir por rotas até então desconhecidas, por águas onde nenhum navegador ainda havia tentado e – que as lendas diziam – local em que o oceano se transformava num profundo abismo.


Certo dia, o rei e seus valentes navegadores decidiram que a proeza deveria ser tentada. Com grande sigilo, arquitetaram o plano que deveria levá-los para a glória ou para a morte. Requeria-se a maior prudência para que outros países não viessem a frustrar-lhes os planos. Por isso, resolveram alardear que, em determinado dia, sairia uma grande frota rumo a uma das possessões do oriente, para empossar novo governador.


No dia aprazado, entre grandes festas e a bênção dos sacerdotes, os navios lançaram-se ao mar.


Navegaram na rota normal até atingir uma grande distância. Então, quando não podiam ser mais alcançados por outros navios ou vistos por algum espião, desviaram-se e foram em direção contrária, rumo ao desconhecido.


Navegaram, navegaram, navegaram – entre a esperança do sonho realizar-se e o temor do fracasso completo – durante dias e noites, que pareciam infindáveis, até que, certa manhã, quando já se sentiam desesperançados, a voz do vigilante gritou:


– Terra à vista!


Todos acorreram, ansiosos, e queriam ver pela luneta se era verdade ou se seria uma miragem. À medida que os navios se aproximavam, foi-se descortinando uma paisagem jamais vista. Além das praias brancas, uma imensa floresta cobria um território enorme.


Estava descoberta a nova terra, habitada por um povo de pele avermelhada, de estranhos costumes. Não usavam roupas, apenas enfeitavam seus corpos com penas de aves. Mostraram-se gentis e hospitaleiros. Parecia que os aguardavam.


Com gestos e palavras que os navegadores não entendiam, os homens vermelhos explicavam que há muitos e muitos anos eles os esperavam. Relembravam a lenda, narrada de geração a geração, conhecida de todos os habitantes:


– Havia um tempo em que o mundo formava um único bloco. Mas houve um dilúvio. A fúria das águas fez submergir uma parte da terra, dividindo-a em dois blocos. Os deuses prometeram que, um dia, os irmãos que haviam ficado no outro lado do oceano dominariam as águas e viriam de novo juntar-se a eles.


Assim, eles achavam que os estrangeiros que agora chegavam eram seus irmãos, perdidos no passado. Daí o motivo de seu júbilo e daquela receptividade.


O comandante tomou posse da terra, em nome de seu valoroso rei, a quem foi enviada uma longa carta, narrando o acontecimento maravilhoso. Diziam nela que haviam chegado ao seu destino. Com a carta, enviaram exemplares daqueles esplêndidos homens vermelhos. Mas, para não atiçar a cobiça de seus inimigos, deveria ser dito que haviam descoberto, por acaso, apenas uma ilha. Na verdade, haviam descoberto um verdadeiro continente, que mais parecia um paraíso. Deram-lhe o nome de Paradoxon.


Paradoxon: nome profético, que iria reger todo o destino daquele futuro país.


Quando a notícia do descobrimento chegou ao reino, o monarca enviou exploradores para avaliarem as dimensões da terra e fazerem um mapa de todo o território. Dividiu o novo país em 12 grandes áreas, doando-as a fidalgos. Eles deveriam governá-las, colonizando a nova terra. Ocorreu que não se animaram a enfrentar a longa distância e os perigos da viagem. Ficaram no reino. Eram donos, mas não administravam.


Por ordem do rei, passaram a mandar para aquela terra distante os malfeitores e os presos políticos que lotavam as prisões do reino. Além desses, muitos aventureiros resolveram tentar a sorte na terra desconhecida. O resultado foi que os primeiros habitantes estrangeiros de Paradoxon foram apenas "sugadores" dos bens e riquezas naturais. Não pretendiam estabelecer-se nem trazer sua família para a nova terra. Apenas enriquecer e voltar para o reino.


Os cristãos bem-intencionados pouco conseguiram em fraterna catequização. O que se viu foi a escravização dos verdadeiros donos da terra. Estranha prática dos que diziam trazer consigo a civilização àquele povo pacífico. Mas os silvícolas, livres por natureza, não se submeteram com facilidade ao jugo estrangeiro. Além do mais, morriam em grande número, devido à crueldade do tratamento e às doenças trazidas pelos "civilizados".


Os colonizadores resolveram então buscar povos dóceis e fortes das possessões de África, que foram submetidos à mais torpe escravização.


As florestas foram devastadas. As minas de ouro e pedras preciosas exauridas. Nada ficava na nova terra. Todos os bens eram transportados além-mar. Mas o pequeno reino, que deveria tornar-se a maior nação do mundo, não soube aproveitar toda aquela riqueza extraída de Paradoxon. Por indolência, transferiram tudo para as mãos de mais esperto empreendedor.


O trabalho era considerado atividade torpe. Terminada a escravidão, recorreu-se a imigrantes estrangeiros de todas as partes do mundo para trabalhar. Toda essa mistura deu origem a uma nova raça. E quinhentos anos mais tarde vamos encontrar Paradoxon ainda em franco processo de miscigenação de raças, religiões e costumes.


Desde o início, em Paradoxon, trabalho e educação estiveram dissociados. Quando passou de reinado a república, os títulos de nobres foram substituídos pelos títulos de doutor. Os filhos das famílias abastadas estudavam no reino e voltavam doutores. Depois, fundaram-se as faculdades em Paradoxon. Com o passar do tempo, Paradoxon tornou-se o "país dos doutores". Nunca foram valorizados os trabalhos e habilidades manualmente exercidos e necessários. Quinhentos anos depois, vamos encontrar Paradoxon com centenas e centenas de faculdades, milhares de doutores, muitos dos quais analfabetos.


Sim! Doutores analfabetos.... Só mesmo em Paradoxon para se inventar o "analfabeto funcional", ou seja, diplomado que não consegue entender o que lê e nem expressar seu pensamento por escrito. Todas as crianças vão à escola, embora a maior parte nada aprenda. É proibida a repetência. Ninguém quer entristecer as crianças de Paradoxon. Todos têm direito a ser doutores. E não vai bastar. Terão de ser mestres, defender teses de mestrado e doutorado. Entretanto, isso não lhes garantirá a subsistência. Em breve, haverá mais médicos do que doentes, mais advogados do que causas, e assim por diante. Coisas estranhas já acontecem no momento em Paradoxon, como um recente concurso de gari a que os concorrentes eram em sua maior parte "doutores." Sem desmerecer a importância da profissão do gari, mas é uma realidade paradoxal, digna de Paradoxon: garis advogados, garis médicos, garis economistas...


Paradoxon tem um belo exemplar de Constituição, feita por grandes juristas, que estabeleceram direitos e deveres dos cidadãos. Mas não funciona. Paradoxon debate-se na mão e contramão de todas as regras.


Um dos aspectos interessantes é a defesa dos direitos humanos. Como não poderia deixar de ser, em Paradoxon, como tudo funciona às avessas, encontramos os cidadãos comuns voluntariamente prisioneiros em suas próprias casas, atrás de grades imensas e de vidros à prova de bala. Paradoxon levou mais de vinte anos estudando detalhadamente as causas da violência, partindo do princípio de que ela estava associada à pobreza. Perpetrando discussões teóricas, prevalece a tese dos que defendem os direitos dos contraventores, coitadinhos que chegaram a esse estágio em virtude da conjuntura social. Enquanto isso, houve tempo suficiente para o crime se organizar e tornar-se a instituição mais sólida e eficiente do país, que, como um imenso polvo, assentou seus tentáculos em todos os setores dominantes da sociedade.


A terra do faz de conta...


Como se verifica, a determinante de Paradoxon foi sempre o "faz de conta." Faz de conta que foi descoberto por acaso, quando foi tudo muito bem planejado. Faz de conta que é uma ilha, e no entanto é um verdadeiro continente. Faz de conta que é independente, faz de conta que é uma república livre, mas submete-se a jugos externos. Faz de conta que é rico, e por isso constrói obras faraônicas, mas com dinheiro emprestado a juros escorchantes. Faz de conta que é um país livre, mas está comprometido com dívidas impagáveis. Faz de conta que é dono da terra, mas continua a deixar que levem suas riquezas. Faz de conta que cuida da educação, mas aceita ser doutrinado pela mídia e pela propaganda. E assim continua vida a fora.


Destino inexorável...


Em busca de soluções não encontradas, finalmente apareceu um milagreiro. Trouxe esperança a todos. Entretanto, o destino de Paradoxon é inexorável. Vamos às promessas.


Paradoxon conseguirá vencer a fome? Parece que vem mais um faz de conta por aí. A sabedoria popular já ensina: "não dê o peixe, ensine a pescar". Paradoxalmente decidem pela esmola, dinheiro dos que trabalham destinado para quem não trabalhar, de acordo com o número de filhos,

Paradoxon procura resolver a disparidade da distribuição de renda nivelando por baixo. A classe rica é, com sempre, intocável. Diminuir lucros das instituições financeiras? Não há como, é preciso proteger os bancos e as empresas estrangeiras. Então achata-se a classe média, "tira-se a roupa de um santo para vestir outro." Todos correm o risco de ficar nus.


Enquanto as grandes reformas são debatidas, o milagreiro, seguindo o destino dos governantes de Paradoxon, cruza incessantemente o oceano, talvez em busca de inspiração nos ares siderais.


Fonte imorredoura de esperança


Apesar de todos os contrastes que envolvem o destino de Paradoxon, ou talvez por isso mesmo, por influência climática ou alimentar — não se estudou o caso a fundo — os habitantes do país são sempre bem-humorados, confiantes, sonhadores e criativos; amigos da paz e das boas coisas que a vida pode oferecer.


Apesar de todas as adversidades, festejam-se os grandes santos, com as festas juninas. Há os emocionantes campeonatos de futebol. Depois é o natal, sempre relembrado com neve, apesar do calor de 40 graus. E "em fevereiro, tem carnaval." Aí, sim, o grande faz de conta. Por quatro dias inteiros, vestidos de príncipes ou princesas, Paradoxon esquece suas dores e temores, e se alegra ao som da batucada ou do trio elétrico.


Mas fiquem tranquilos! Aguardem! Na alma de Paradoxon habitam valores cristãos e patrióticos. Por isso Paradoxon nunca esmorece: o seu povo sabe, na beleza de seu sonho, encontrar uma fonte imorredoura de esperança.

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