LAURO FONTOURA
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 25 de fev. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 14 de abr. de 2024
"Céu Deposto
Acabo de ler o último livro de Santino Gomes de Matos: Céu Deposto. Trata-se de uma bela coleção de versos e, através deles, sente-se que o seu autor – filólogo, jornalista e professor – a quem Uberaba rende o preito de grande e justa admiração, por sua cultura e formosa inteligência, é, antes de tudo e acima de tudo, um artista. E digo intencionalmente acima de tudo porque o artista, para mim, é a exceção e um privilégio. Nasce com a missão divina de focalizar a beleza. Com efeito, a arte não é apenas, como afirmou Zola, a natureza vista através de um temperamento, mas é a expressão material da beleza. E a beleza está por toda a parte: no ar que nos envolve, na luz que nos deslumbra, no som que nos enleva e no aroma que nos embriaga. Mas, é imponderável, etérea, imaterial. E somente o artista é capaz de refletir essa beleza errante na obra de arte.
A função do artista, portanto, é revelar a beleza, dar-lhe forma, situá-la, definir-lhe os contornos, transportá-la para a realidade sensível e torná-la humana e terrena.
A função do artista é, por exemplo, imobilizar, no retângulo de uma tela, o flagrante luminoso de um crepúsculo, quando o sol ensaguenta as nuvens, ou o paraxismo de um estado de alma, num poema de Vitor Hugo ou numa valsa de Strauss.
Por intermédio do artista, a beleza se materializa e se exprime, seja num noturno de Chopin, seja na dança bíblioteca dos sete véus ou num quadro de Rafael.
Assim como o legislador e o juiz concretizam o direito natural, que é eterno, imutável universal e preexistente, numa norma ou numa sentença, o artista, esse mágico da luz, do som, do movimento e da forma, fixa a beleza na obra de arte, traduzindo, a seu modo, a obra divina. Essa obra primitiva, que surgiu com o Genesis, exibe-se, como disse, por toda a parte. Vêmo-la em redor de nós, imensurável, cósmica, abrangente. E tanto se mostra, se é dia, quando o sol doura a copa das árvores e veste de cor a natureza, ou, se é noite, quando a lua parece um pássaro de prata parado no ar.
Essa obra divina, que é a fonte perene da inspiração, ostenta-se, perdulariamente, na alegria purpúrea dos cravos e das papoulas, que soltam sangue pelas pétalas, na música caranate dos ventos ou nas espumas marilhantes, que são soluços das águas que se dilaceram nas pedras. (Perdoe-me, pois estou também fazendo poesia). Mas, só o artista é capaz de captar essa beleza nômade e reduzi-la à expressão permanente da obra de arte. Só ele tem essa faculdade, esse sexto sentido, que se chama sensibilidade artística.
O artista é como a árvore. Somente ela – e nínguém mais e nada mais – pode retirar do solo os elementos necessários para a composição maravilhosa da flor e do fruto, que são dois poemas vegetais. Ambos – artista e árvore – refletem, pela química das espécies, a beleza universal.
Como vê, não exagero – e você sabe disso melhor do que eu – quando afirmo que o artista é uma exceção e um privilégio. Por isso mesmo, nestes dias sem poesia que estamos vivendo, em que predomina o imediato, há ainda quem faça poesia e poesia de verdade, como é a de Santino, embora refletindo, como reflete, a inquietação e a ansiedade do meio em q ue se agita o poeta, esse estranho cavaleiro andante que, ao in´vesde empunhar a espada faiscante de Rolando e aspirar à morte, como sonhara Bilac, entre um galanteio e uma tragédia, "trespassado de golpes e de beijos", exclavam sem nenhuma vocação para quele heroísmo romântico da idade média:
'Quero morrer qual bíblico Absalão:
suspenso dos cabelos, todo em sangue,
e uma lança ridícula na mão.'
Por força do ambiente, a arte de Santino, em 'Céu Deposto', é introspectiva, toda ela voltada para dentro, eminentemente subjetiva, focalizando, de preferência, a paisagem interior da alma humana e, principalmente, da alma do autor, a um tempo orgulhosa e humilde, irônica e piedosa, áspera e mansa, mas, sobretudo, sofredora.
E dizendo que Santino, antes de tudo e acima de tudo, é um artista, creio que falo bastante a respeito do seu livro, que não analiso, porque não sou crítico literário, mas recomendo como alta expressão de arte. E a arte não é um esporte, não é um passatempo, não é um brinquedo. A arte é uma religião, em cujo templo o artista se enclausura e se refugia, para oficiar, como um grego do século de Péricles ou um italiano da Renascença, o rito do amor e da beleza."
Artigo publicado no "Lavoura e Comércio" em 14 de maio de 1962
"(...)
Escrevo-lhe para transmitir-lhe a minha impressão sobre o seu livro. Hoje, estou enviando ao 'Lavoura' um ligeiro comentário que fiz em torno dos seus versos, servindo-me, quase que integralmente, daqueles conceitos sobre arte apenas, como costumo fazer.
Tenho a realçar no seu livro: Terra do Coração, Trono de Baleia, Covardia, Olhos Mortos Dentro da Tarde e Lança de Absalão.
Mas, no seu livro, tudo é bom e agrada, porque você, realmente, tem alto merecimento.
(...)"
Trecho de carta de Lauro Fontoura a Santino Gomes de Matos
Lauro Savastano Fontoura (Monte Alegre de Minas, 1903 – Uberaba, 1977). Advogado, jornalista, professor universitário, escritor. Membro da Academia de Letras do Triângulo Mineiro, colaborou intensamente na imprensa, tendo sido redator do "Lavoura e Comércio". Foi advogado-geral do Estado e Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Atuou destacadamente na política, tendo sido secretário municipal em mais de uma gestão e prefeito de Uberaba.
