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MAL-ENTENDIDO – Santino Gomes de Matos

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 17 de jul. de 2022
  • 7 min de leitura

Atualizado: 14 de out. de 2022


Sempre as mesmas amabilidades. Em qualquer parte que me encontra, cumula-me de gentilezas, sorri-me, lança-me olhares de ternura, e numa frase, que de tão dita, se lhe tornou peculiar:

– Como sou feliz em o ver!


Dei agora em fugir-lhe. A maledicência anda de olhos desmesuradamente abertos e aos ouvidos, cujos tímpanos percebem a vinte léguas de distância tudo lhe parece digno de retaliações mais ou menos escandalosas.


Já houve até quem me felicitasse por tamanha ventura, a de possuir uma admiradora tão extremada e tão sem reservas, na pessoa de d.Tecla, que mesmo em presença do esposo, era incapaz de coibir o seu "fraco".


Protestei enérgico, com quantas forças reuni na ocasião. Amigos de longo tempo, eram naturais semelhantes mostras de amizade. Botei-me por aí afora e os maldizentes, os caluniadores encheram de más línguas amaldiçoadas o veemente sermão que me saiu, sobre os pecados bucais.


O efeito nulo dessas defesas, bem o conhecia. Dentre os incrédulos, o mais crédulo, quando muito daria um risozinho irônico ao botão mais em evidência do coelete e estava pronunciada a sentença: palavras, palavras.


Nunca mais lhe falei. Se em casa, escondo-me, e o clássico "não está" põe-lhe no semblante um gesto de desapontamento, quando me procura.


Na rua, caso a percebo, dobro a primeira esquina, entro à primeira casa, saindo-lhe incontinenti pelos fundos, contanto não dê de cara com tal senhora, a quem, de fato, testemunho boa amizade e devoto sincera simpatia... de longe.


Apesar de tantas precauções, não fio da minha segurança. Um estampido qualquer e levo as mãos às ilhargas ou apalpo, corrido, a camisa, na presunção de possível atentado contra minha vida.


Reconheço-lhe no marido um rapaz calmo, amigo da ordem, comodista e até certo ponto incapaz de dar crédito ao que se assoalha à boca pequena.


É estranho porém que me cause tão má impressão a vista de um revólver. E onde paira o meu sossego, aquela antiga placidez do espírito despreocupado e bonachão?


Já vai tempo de pôr os leitores fora de cogitações acerca das virtudes de D. Tecla. Santa criatura. Antes duvidara dos cornos de mestre Belzebu, coisa muito para acreditada, entre os exorcismos de dois dedos em cruz, religiosamente beijados.


O que a colocou numa situação assim melindrosa, e expôs-lhe o nome às acres censuras das comadres, foi justamente o excesso de uma virtude, que possui em alto grau: a gratidão.


Anda bem longe a época. Ela é mãe de dois filhos e eu solteirão inteiramente usado, tabaquista, de lenço encarnado e respectivo corrimboque, afundado no bolço das calças.


Naqueles passados e saudosos tempos, nada disso. Apenas em sonhos, ela entrevia um noivo e eu fazia "pé de alferes" a meia dúzia de mocinhas, muito maneiroso, muito lampeiro, atraindo atenções frescas sobre mim, quando hoje só me tocam os olhares melosos de alguma desiludida, prestes a se embiocar na mantilha de rezadeira.


Tremenda crise de casamento, punha em contínuo sobressalto as moças de nossa terra. Em pura perda era o expediente do "dois por um". Podiam diminuir os anos à vontade. As calças não chegavam para as saias. Acrescia ainda, como agravante, absoluta falta de emprego para os jovens, que abalavam à cata do ganha-pão, quando não preferiam ficar dando de pernas, a intrometer-se na vida alheia, censurando-a, namorando algum dote, que muitos engoliam com a vista e raros, os felizardos, embolsavam na realidade, suscintando invejas.


Vis a vis à nossa, era a casa da Tecla.


Quando a conheci, orçava pelos vinte anos, segundo a taboada da velha mãe, senhora muito de bem, à margem algumas alcovitices, no seu zelo pelo futuro da filha. Esta última, não se podia dizer bonita. Mas, feia, deveras não o era. Tinha certa graça ao falar e a rir: os olhos de azul claro, os cabelos louros, o nariz mais para afilado, sem contudo o ser, a boca prosaicamente igual ao comum delas, com a diferença de que um rascunho de buço penujava a parte superior da sua.


Tornamo-nos dentro em pouco grandemente amigos e, além disso, confidentes. Muitas vezes dizíamos das nossas esperanças. Ela contava com próximo casamento – ideia obrigada a toda moça – e quanto a mim, entrava nos meus planos a morte do fiscal da feira, do oficial de justiça ou do cobrador de impostos – empreguinhos que namorava longa e enternecidamente e sobre que construíra já maravilhosos planos.


Vi-me frustrado nos meus cálculos e ainda bem. Hoje tenho o suficiente à vida mais ou menos folgada e grande me seria o remorso, se a minha vontade entrasse com o seu concurso na morte de três honradas criaturas, que somente no ano passado se transportaram à melhor.


Ignoro se o meu temporário desejo antecipou-lhes o passamento. Em todo caso, assim sendo, podia tê-los logo liquidados. Um ou dois anos mais, de insistência, era quanto bastava. É o que penso; e pensando me tranquilizo. Morreram por conta própria, quando já nada trazia para mim que vivessem.


Tive frustrados os meus planos e ainda bem. Mas a Tecla julgava das mais razoáveis sua aspiração.


Os dias decorreram, formando meses, formando anos. Desenganei-me. Pus abaixo os castelos de futuro empregado municipal, rasguei o título de eleitor governista e, mercê dos ricos cobres de um padrinho, dei em bodegueiro, independente, sem partidos nem intenções assassinas sobre a vida do próximo.


Estava fixada minha carreira. Foi quando lembrou-me a Tecla, tanto o egoísmo anda a agir dentro de nós.


Coitada! Como muitas outras, se ia afundando no barricão, acenando de longe as últimas esperanças que se lhe encobriam por detrás dos trinta e nove anos.

– Ser-lhe-ei o dedo da Providência – rosnei cá no íntimo, no dia em que os meus números lhe acusaram tal idade, embora ciente do desconto que, por via de costume, necessariamente sofrera.


Falava-se em idades. A Tecla forçosamente havia de ignorar a sua. E dirigindo-se à velha mãe, sempre às voltas com as contas do rosário: Hein, mamãe, em quantos anos vou?


A velha cortava em meio um padre-nosso e, olhando por cima dos óculos, estudadamente:

– Andas a pegar os vinte três. Nasceste numa sexta-feira, às 4 horas da tarde, do dia de Santa Tecla, a 19 de agosto de 1900.


Era de feito, a minúcia da exposição. E ela, entre descontente e acanhada:

– Velha, não acham?


Torna-se escusado dizer das dificuldades que se me defrontaram, dos planos engenhosos que pus por obra, do patriótico e louvável intento de aumentar o coeficiente dos vivos, com a realização de mais um casamento.


O Pamplona mostrou-se irredutível, de princípio. Prendiam-se a motivos financeiros as razões por que se obstinava celibatário. A tal ponto, nego que lhe chegasse a avareza. Talvez fosse até acessível à prodigalidade, caso tivesse menos desconfiança no futuro. O mais, do que lhe sobrava, ficava a crédito das desgraças, dos infortúnios e contratempos, que sentia impenderem sobre sua cabeça, envoltos no mistério do tempo.


Amealhava só para isso. E se a prosperidade tentava desmentir-lhe os falsos prognósticos da desconfiança, tangendo-lhe os negócios de vento em popa, mais o trazia suspeitoso de que não vinha longe o formidável contrapeso das vicissitudes.

Venci-o afinal.


Era meu vizinho e cá o meto assim mesmo, em mangas de camisa, cheirando a aguardente e cebola. Nada de apresentações. Pamplona é tudo. A ideia fica por conta dos leitores. Ajudem-se das recordações, que todo vendeiro deve ter um cunho de afinidade, inalienável. Ainda quando duas conjecturas se manifestem em franca oposição, resta alguma coisa em que os pensamentos se acordam.


Concebam-no porventura alto e magro como um girifalte, abrindo o enorme compasso das pernas com os dedos metidos nas aças do suspensório; ou baixo, gordo, atarracado, a enxugar da testa estreita suor oleoso e rico, pouco importa.


Todos hão de vê-lo por detrás do balcão, a esvaziar medidas, a arrumar em pilha o níquel dos trocos, mentindo sobre a espécie do arroz e da farinha, sempre de primeira, da melhor qualidade – vício que nos vem de muito atrás, desconfio que dos tempos bíblicos, como estribilho do que Jacob terá dito a Esaú, quando lhe comprou por um prato de lentilhas o direito de primogenitura.


Parece já se me deparou algures semelhante ideia. Desconfio. Alguma coisa mais ou menos igual, talvez. As palavras devia ser outras. Pelo menos, não as copiei. Mas a ideia quase tenho certeza. Dá-la com segurança é-me impossível. A memória me anda a tal ponto emperrada que nem a poder de todos os fosfatos, capazes de ingerir sem dano, iluminaria o caso com uma citação


Afinal de contas e já vamos desbridado, aceitem-na os leitores, se de molde ao que vem. Em caso contrário, releguem-na e ficará por responsabilidade de outro, a quem deveras agradeço, menos pela ideia, do que pela paternidade que assume. E findou o comentário. Aliás, a este também encontro alguma semelhança com outro, cujos farrapos me vagam dispersos no espírito. Se de fato o fizeram, antes de mim, força é arcar com a pecha de plagiário. Pagarei assim o crime das minhas leituras.


Ora, por que tais divagações? Já venho desde os tempos bíblicos e o Pamplona, de quem desejo falar, aqui o tenho, a dois passos, paredes-meias.


Toda tarde ia conversá-lo, tomar-lhe o pulso aos sentimentos, saber o efeito das minhas preleções.Não se revelava por palavras. Era entretanto a gravata mais cuidada, o cabelo agora repartido com esmero, as botinas sempre limpas de pó, que me diziam das suas transformações espirituais.


Subiam de entusiasmo os meus discursos. A Tecla, que apresentara com ótima e virtuosa criatura, também foi subindo, subindo, até enichá-la entre os anjos, mais pura que um querubim e, além disso, mulher.


Não queria dizer nada e já me vai grande loquela. Contudo, ainda ganham os leitores, se me fico por aqui. Muito mais me resta que acrescentar, se dou por miúdo a história de três meses bem vividos e bem cheios, no empenho de impingir uma pílula por açúcar cândi.


O Meireles, esse desempenhou, a bom desempenho, o papel de rival. Apesar de entrado em anos, era de boa lábia e pândego a valer, o diabo do velho.


Já me acho outra vez atrás de recordações que em nada adiantam. Basta saber-se que, um belo dia, assisti à união legal e religiosa de d. Tecla Fernandes com o sr. Jonathas Pamplona, honrado negociante de secos e molhados.


O Pamplona estava radioso, a ressuscitar talvez, do fundo da memória, algum quadro magnífico, dos muitos que lhe pintara, do céu aberto do paraíso em miniatura, que seria o lar constituído com um anjo por esposa como d. Tecla. Esta, vendo destoldado o horizonte da vida, ria de prazer nos menores gestos.


Atuei como padrinho da cerimônia, que ocorreu nas mesmices rituais de sempre. E, em casa, como louro de triunfo, saudei a palmazinha verde de melindres, arrancada ao ramalhete da noiva, que, por entre dois esgares, repuxando a comissura dos lábios, no mal-sucedido ensaio de um sorriso, prendera-me à lapela da jaqueta.


Tudo correra às maravilhas. O meu nome não entrava como causa precípua no acontecimento e eu jubilava, não tanto por modéstia, como por conveniência.


Foi meses depois, num momento de azeda discussão, que, segundo o testemunho da criada, o Pamplona bradou rebarbativo:

– Ao Saboia, unicamente ao Saboia, devo a aquisição desta bisca, que tão longe está de ser anjo quanto eu de ser Jó, para aturá-la.


Fez-se luz no espírito de d. Tecla. Compreendeu tudo, por mal dos meus pecados. E cônscia dos próprios imerecimentos, avaliou quanto devia despender em gratidão, para corresponder os trabalhos, os sacrifícios que curtira em seu proveito.


Daí o que já se sabe – os agrados, as finezas, as doçuras e o consequente perigo da minha pobre pele, exposta aos balázios de um marido irado.


Resta-me o consolo de uma boa ação. Nunca mais, porém, bodas ao céu.


Conto do livro Flagrantes ao Sol do Norte, publicado em 1929.


 
 
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