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NOITÍSSIMA – Santino Gomes de Matos

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 10 de jul. de 2022
  • 2 min de leitura

Atualizado: 25 de jan. de 2024

E quando, na noite,

me der vontade de me matar.

(Manuel Bandeira)


Gestos de suicídio, magnetizando o ar.

Noite. Noite das noites, noitíssima.

A angústia difusa de imenso pecado negro

pesa sufocações na consciência do mundo.

Carvões e carvões da treva imemorial,

e da treva que desaba tempestades

do oco dos universos, diluviosamente.

Ora, vamos todos dissolver-nos no corpo físico da escuridão,

pois um cansaço universal da Vida

pede a paz sem claridade,

o horror do não-ser.

Já não há presente, nem passado, nem futuro.

Todos os pêndulos do mundo pararam na espessura de breu.


Coalha-se no céu

o pavor da traição das cores negadas ou extintas.


Noite. Noite das noites, noitíssima.

Mais uma gota de treva,

com o truncamento de um destino particular,

não haverá de estremecer o caminho denso,

timpânico de desesperos.


Carregamos conosco o Mundo,

mas nos planos milenários do Mundo

valemos ainda menos que um pingo de lama.

As fontes matinais da crença

se confundem com o delírio das últimas perdições,

nesta noite de limites indistintos,

para o denominador comum de todas as sortes avariadas.


A cadelinha Laika suicidou-se

no bojo delirante do Sputinik,

inconsciente da exaltação do martírio.

Vamos chorá-la nas lágrimas fáceis do sentimentalismo.

Vamos erguer-lhe um mausoléu de glória.

Mas nesta noite, noite das noites, noitíssima,

de gestos de suicídio magnetizando ar,

ninguém sabe distinguir entre o animal e o divino.


Não há discriminações de instintos e heroísmos

nas fronteiras comunizadas da Vida e da Morte.

O ontem, o hoje e o amanhã

dormindo no mesmo ataúde lacrado.

Onde acaba a eternidade? Onde começa o tempo?


Tudo simples e humano, paradoxalmente,

nesta condensação de sombras cegas,

da cegueira antegenesíaca do incriado.


Mas o gesto franco e definitivo

dorme, contido, na preservação doente

da natureza viciada da própria miséria da vida.


Queremos ver e não vemos

no fundo dos abismos pressentidos.


Como será depois que não seremos mais?

Haveremos ainda de cantar,

com a tristeza infinita dos pássaros cegos?

Ou sofreremos o insulto da validez inútil,

com uns restos de consciência aprisionada

no limbo dos silêncios supremos?


O Nada repugna como uma baixeza impossível,

apesar da anestesia profunda

de todos os impulsos vivos,

nesta noite de caos.


Já não há presente, nem passado, nem futuro.

A alma se faz um mar morto de escuridão,

onde as últimas lembranças agoniadas se dissolvem,

num sabá de sombras dispersas.


Não; nunca existiram formas de mulher

modeladas em anjo de Rafael.

Nem olhos verdes e úmidos

de vagalume em noite de chuva.

Nem raptos delirantes de volúpia,

com um gosto espiritual de pecado de santa.


Dormem no mesmo ataúde lacrado

o ontem, o hoje e o amanhã.

Mas esta alucinação das formas brancas,

como taças de lírios,

a florirem sujas concupiscências!

Os seios de Vênus, nascendo das espumas,

também floriram brancuras

nas convulsões epiléticas do mar...


Não; nunca houve gôndolas místicas de lua,

para o idílio de corações intocados.

Nem curvas quentes de lascívia,

por onde se despenhou,

num delírio de chão e de carne insatisfeita,

um sonho enfeitado de setestrelo.


Somente a noite é real e permanece.

Noite das noites, noitissima,

cheia de gestos parados de suicídio,

magnetizando o ar.


Do livro Céu Deposto

©2023 – Todos os direitos reservados. Permitida a divulgação, desde que citada a autoria.

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