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O EMIGRANTE – Santino Gomes de Matos

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 10 de jul. de 2022
  • 9 min de leitura

Atualizado: 14 de out. de 2022


Graciosamente, dominando as extensas várzeas que se lhe estendem aos pés, num oceano de pó, que o vento por vezes levanta para o céu, espiralando, rodopiando em redemoinho, vamos encontrar o pouso mais certo e mais agasalhador da redondeza.


Fica sobre um cômoro. E não sei por que caprichos do esforçado dono, naqueles ermos, longe do auxílio das vilas afastadas, branqueja a casinha muito alva, disfarçando-lhe a cal os enchimentos de taipa das paredes, e por sobre os caibros rústicos, vermelham telhas cor de ouro, num brilho fosco, ao sol.


Todos quantos palmilham a estrada poenta, tostados do sol do verão, escaldando a areia, ou por rigorosa invernia, encharcados até os ossos, vencendo atoleiros e vadeando riachos, que espumejam bravios, remansando-se nos cipós, encontram asilo seguro e incomparável conforto na latada do Rôla, postada ali, num montículo, como atalaia da boa hospitalidade e da comiseração.

Muito de indústria foi que, do beiral da casa, fez ainda estender aquele telheiro, às abertas, sustentado de quatro forquilhas, crivadas de ganchos de ferro e de madeira. Era o compartimento dos viajantes.

Havia deles que mal pronunciavam o "ô de casa", já iam desdobrando a rede, a enfiar-lhe os punhos nos rústicos armadores.


A mulher respondia de dentro. E quando aparecia à janela:

– Ah, é o "seu" Sirvino? O Rôla não tarda da roça.

Algum comboieiro de profissão ia e vinha, a fazer comércio de uma para outra localidade, tendo certo o ponto de descanso na casa do Rôla, a quem trazia as novidades mais frescas e deixava sempre uma garrafa da "aracatizeira", para os traguinhos habituais.


E como este, muitos outros. O Rôla sabia os dias em que havia de passar o "Chico Perereca", o "Manoé das Instans", o "Vicente Barbadinho", com carregamento de arroz aqueles, este com rapaduras, mais um com aguardente.


Recebia-os a todos, com expressões jocosas, quase sempre com um dito chistoso, em que lhe sabiam fértil a imaginativa.


Na verdade, mais de uma feita entrara o nosso herói em desafios ao pé da viola e gabava-se de ler "pru riba" como um advogado.


Aprendera à própria custa, "puxando pela ideia". O pai nunca o pudera mandar à vila, aos bolos do mestre Polidoro, de quem corria fama o rigor da palmatória.


Mas, um dia, a instâncias suas, trouxe-lhe uma carta de a b c. Que festa, que alegria! Volteava-a do direito para o avesso, e do avesso para o direito. Palpava cada um dos seus caracteres e metendo-a embaixo do sovaco, passeou-a ufano, diante dos manos. Levou-a mais tarde em casa da madrinha, no Cafundó, e era como se já fosse uma sumidade, só em possuir a chave dos conhecimentos que alardeava.


Com quanta dificuldade, entretanto, conseguiu conhecer as letras, reuni-las, soletrar as palavras.


Em casa, sempre lhe demoravam, espichados em redes bordadas, alguns homens muto sisudos, de lápis no bolso da blusa e uma caderneta onde garatujavam, aos olhos pasmos dos arrieiros. Respeitava-os. Até o pai fazia sair, de dentro de uma velha arca, os dois casais de xícaras que comprara na vila, quando de seu casamento. E os homens, sorvendo a gole e gole, o café, diziam do lucro das viagens, da tática usada nas negociatas.


Graças a um deles, aprendeu, certo dia, até o h. Outros ensinaram-lhe o resto. E o que não fizeram os boiadeiros, fez a sua inteligência, fez a sua boa vontade.


A alta figura do Rôla punha-se de pé, assentava a rude mão sobre o ombro do interlocutor, ensaiava alguns passos e vinha dar vazão à nova torrente de palavras, de que parecia ter um manancial na garganta. Até aqui, o dono da casa, rústico e simples, mas na sua rusticidade e simpleza, guardava um coração de ouro, uma alma generosa e boa.


Estimava deveras a mulher e a filha, trazia-a num luxo de carícias e mimos infindos. Completara os dezoito anos. Morena, de grandes olhos negros, as formas arredondadas e bem-feitas, muitos violeiros tiveram ocasião de lhe cantar a graça inata, os atrativos de uma beleza tropical, que punha tremores nos corações e gestos de volúpia nos olhos da caboclada.


Traziam-na em contínuo assédio. O mais cioso, porém, era o pai, vigilante e atento, furtando, quando possível, o tesouro às vistas ávidas e curiosas. Às vezes, levava-a aos batuques e aos sambas. Tinha o gostinho de ver a disputa que se armava entre os rapazes, requestando-a para as valsas e mazurcas. Mas, longe ainda a primeira voz do galo, com um "ah" de desapontamento em todos os lábios, rumava a casa, antes que as cabeças de todos se escaldassem, pelo abuso da meladinha.


Bethisa a tudo aquiescia, condescendente, sem outra vontade que a do pai, tão bom, que até a levava às luminárias, na vila, pela festa do padroeiro.




Siá Candinha, a mãe, reclamava contra os gastos. Mas ela própria embevecia-se de ver as lanterninhas de cor em volta da capela e os buscapés, que ziguezagueavam em linhas quebradas de fogo pelo adro da igrejinha.


O Rôla, fanfarrão, mostrava os braços musculosos e dizia, confiante:

- Tenham fé em Deus que enquanto estes me não caiam "pulo tronco, não lhes faltará o "bucado".


Destarte se inocentava, perante a consciência, de alguns copitos de cachaça a mais e uns tostões de menos, que se ficavam na mesa da roleta. E assim iam levando a vida.


Ora, uma tarde, quase noite, ao lusco-fusco, chegou-lhes à alpendrada, um viajante transviado.


Vestia de mescla azul; um chapéu de abas largas sombreava-lhe o rosto moreno e enorme lenço de xadrez tinha em lugar da gravata, metido num largo anel de ouro, com que o ajustava ao pescoço. Conduzia pela rédea o cavalo cansado e se grande lhe vinha sendo a caminhada a pé, contudo, não dava mostras de maior fadiga.


A hospitalidade do Rôla foi-lhe das mais francas. Siá Candinha trouxe uma rede "avarandada" e admitiram-no a cear em família, à falto do arrieiro, que assasse, ao relento, a carne de sol. Distanciara-se do comboio e não sabia como, perdera o caminho, geralmente trilhado, mas por onde, aliás, era a vez primeira em que vinha.


Bethisa servia a mesa. Trouxe numa tábua a rapadura raspada, um coité com farinha e o potinho de coalhada, com uma cuia por cima. Depois disso, desapareceu. Não podia assistir ali, com "gente de fora". Do contrário, seria semostradeira e metida.


Ao visitante, muito lhe pesou aquela ausência. O Rôla desenferrujou a língua de oito dias "de molho", mas só lhe conseguiu arrancar monossílabos. Queixou-se de sono e de fadiga quando, já lá fora, ensaiava o dono da casa o início de outras infindáveis histórias, sentado num cabeçote de cangalha.

– Pois Deus lhe dê uma boa noite.


Assim se despediu o Rôla. E o viajante, deitado agora, abandonadamente, contemplava as estrelas, na absorção dos devaneios e das cismas em que se embalava, ouvindo a voz dos sapos, em coro, num charco vizinho.


Viera de propósito. Caminho perdido, comboio que lhe ficasse distanciado, puras invencionices. Viera ali para vê-la e vira-a, sobre-excedendo de muito aos elogios da fama, a impressão que lhe ficara da sua arrebatadora beleza.


O Marcílio tornou-se dos mais conhecidos naquelas paragens. Viajava com um único companheiro – um negro velho – e não iam além de seis os animais de sua tropa. Nunca o Rôla teve visitante tão assíduo.


–Tombém home, você é qui nem corisco: perna lá e perna cá.


Bethisa vinha olhar entre as reixas da janela. E o caboclo, num olhar significativo:

– Só encontrei um "vai não torna" na minha vida, "seu" Rôla.


A janela fechava-se. A moça se fazia cor de pitanga e só muito mais tarde aparecia, no seu vestido de cassa, a conta de amealhar as galinhas.


E aquele amor cresceu no descampado, tornou-se o oásis florido daquelas almas, sorrindo-lhes em promessas e esperanças – ele a cantarolar dolente, caído sobre a espenda da sela, ao trote moroso da alimária – ela investigando os horizontes, escutando ansiosa o estalido das linhas, sentindo-se desiludida a um ruído estranho ou cheia de esfuziante alegria, quando os "eias" do negro velho lhe chegavam ao ouvido apurado.


Uma feita, vinha vindo da roça. O chapéu de palha desabado e alpercatinhas rasas, fora à colheita do feijão, que trazia entrouxado, no braço. Senão quando um cavaleiro lhe acenou do recando da estrada.


Reconheceu-o. Baixou os olhos, medrosa; teve ímpetos de fugir, mas ele já estava perto.


Do outro lado da cerca, nervoso e excitado, balbuciou o Marcílio qualquer coisa a modo de declaração. Ela não respondeu nada. Em ânsias, tinha o colo sublevado, os olhos nadavam-lhe em lágrimas. Afinal, arrancou-se do seu enleio e num impulso instantâneo, caminhou para ele, estendeu-lhe a mão gelada e correu a bom correr, por entre as beldroegas, em direção a casa.


Foi a primeira vez em que se falaram. E a dúvida do comboieiro desvaneceu-se. Não bastavam as resedás, que lhe deixava em qualquer parte, nem os galhos de manjericão que encontrava metidos na carona, ao se ausentar por alguns instantes.


Esquivava-se tanto! Olhava-o dentre as reixas da janela ou da cerca de pau a pique, no quitalejo da casa. Fugia-lhe, se a buscava. Mas os seus olhos não mentiam, amava-o, era sua.


E esfregou de encontro a palma, os dedos da própria mão, procurando ainda o contato gelado da outra, que se ficara na sua tão pouco tempo, depois de uma eternidade de espera.


Tempos tempos, pela estrada poenta, caminha a custo, o animal. O sol dardeja do céu escampo, muito alto e muito azul. urubus cruzam todas as direções, num revoar sinistro. Baixam, como nuvem negra, sobre cadáveres putrefeitos de animais, disputando-lhes as postas, num crocitar enraivado, ferindo-se com as asas, puxando dos bicos ensanguentados uns dos outros, pelancas de carne e osso.


Um vento triste passa assobiando, como um lamento, entre as árvores garranchentas, desnudas, cujas folhas se vão, em revoada, num dispersar sinistro.


Nem uma sombra. Nem uma nuvem no azul diáfano. E o sol, numa inclemência brava, derramando catadupas de fogo, vertendo um fulgor que deslumbra e cega e extenua.


Era no período mais agudo da seca. Os olhos debalde se fitaram no céu; em vão subiram, agoniadas e aflitas, as preces do povo, os benditos cantados e soluçados, nas procissões numerosas, pelos campos e cidades.


Cada dia o sol se levantava mais belo e mais esplêndido, na sua majestade sinistra, e os velhos balançavam cabeça, imóveis e cismarentos, na previsão dos martírios tantas vezes curtidos.


Começara o êxodo. Os últimos recursos tinham-se esgotado. As choças, as cabanas e mesmo casas mais remediadas, subitamente empobrecidas, despejavam para as estradas, as levas famintas, em farrapos, disputando ossos aos abutres e às mais das vezes sentindo ainda vivos, as bicadas dos corvos de que seriam pasto, na sua extenuação e cansaço, sem poder avançar um passo sequer, nos estertores da fome e da sede, cavando o chão duro, ferindo os dedos, bebendo algumas gotas de sangue negro que mal se verte, já a meio coagulado nas veias.


Tanto quanto podia, excitava o viajante, o cavalo magro e sem forças. Ele próprio sentia-se desfalecer. Andava-lhe uma zoeira nos ouvidos e os olhos lhe brilhavam acesos, incendidos como no fogo do céu, aluminando-lhe a face encaveirada.


Há dois dias não comia senão restos de farinha seca e seis horas já que tragara o último golo d'água, da borracha presa à garupa. Mas não devia estar longe. E ela?


Uma dúvida cruel apunhalou-lhe o espírito. A mão caiu sobre a cinta e a faca lhe rebrilhou, em reflexos fortes, à altura do peito. Outra vez embainhou-a, entretanto. Quem sabe?


O cavalo tropeçou e caiu. Tentou ainda levantar-se, mas só conseguiu escabujar, ferindo o solo com o casco, produzindo um som cavo, que repercutia, no pavoroso silêncio circundante.


Continuou a marcha a pé, estugando o passo, perseguido pelos relinchos do animal, sem dúvida já atacado das aves de rapina.


Não estava longe, com efeito. A casinha deu-lhe logo na vista. Mas tão mudados aqueles sítios, tão outros! Tudo abandonado. O simum da desgraça passara, devastando tudo. Por toda a parte, ossadas branquejando. Berros tristes e chorosos de animais, lamentando-se em volta de outros, já cadáveres. Um cheiro nauseante de carniça, trazido pelo vento, sempre a gemer, nas várzeas desertas e a cúpula do céu, mito alta e mito azul, pairando sobre o cenário, envolvendo-o nas chamas da sua cólera.


A casinha estava fechada. Um ramo seco pendia, suspenso da janela. No alpendre, viu passos de fresco e pareceu sentir vestígios de lágrimas recentes, na soleira da porta. Caiu extenuado, murmurando o nome dela, beijando as pegadas da sua felicidade que fugira.


Ardia em febre. Nem um golo de água, nem uma migalha de pão.


A noite descera. A lua apareceu, elevou-se muito branca, horrorizada talvez, do tétrico espetáculo que envolvia nas dobras do seu véu.


E ele se recordou da primeira noite em que dormira li, com a imagem dela aconchegada ao peito. Agora...


Alucinado, com as mãos pelo chão, tentou debalde erguer-se. Nos negros lábios ressequidos, uma sombra de sorriso, sem alento para desabrochar, ficou-se paralisada. Os olhos muito abertos, fora das órbitas, numa expressão de assombro, misturada de alegria, e a cabeça lhe resvalou num regaço. Era ela.


O vento soprou mais rijo. O torpor em que jazia, a pouco e pouco, anulou-se. Fora tudo uma alucinação. E morreria sem vê-la, sem estreitá-la nos braços.


Deu-lhe forças o desespero. Empurrou a porta, que cedeu. Lá estava na sala, seu bauzinho abandonado. Fora ele próprio quem se encarregara de trazê-lo para o seu presente de anos, a mandado do Rôla. Abriu-o. Dentro havia água e comida. Uma quartinha de barro e dois pratos com carne assada e farinha, postos ali de propósito, esperavam por ele.


Sabia da sua vinda, que a mandara avisar. E privando-se do mesmo sustento, com uma abnegação quase superior à força humana, antes de partir ali lhe deixava, talvez, a própria vida.


A indecisão foi curta, no receio de profanar aquela relíquia do seu amor. Venceu a fome e devorou por muito tempo, avidamente.


Um rancho de emigrantes passou. Juntou-se a eles e andou de grupo em grupo, indagando daqueles espectros vivos se a não tinha visto acaso. Julgaram-no alucinado. E se foi, ligado a outras caravanas, sempre a perguntar por ela, senão não a tinham visto, no seu vestido de cassa, com um resedá florindo no cabelo.


Uma tarde, sentiu-se exausto. tombou extenuado, à meia sombra de uma árvore. A récua de famintos sumira-se numa curva da estrada, arrastando os passos tardos, mais mortos do que vivos.


Sentiu em volta um tatalar de asas. Eram urubus que já farejavam a presa. Abriu os olhos enevoados, levantou no ar o braço esquelético e descaiu exânime, abandonadamente para trás. Mas a cabeça não lhe tocou no solo.


U'a mão enxugava-lhe o suor visguento da fronte e ao seu hálito, outro hálito se confundia, ritmado da mesma ânsia opressa. E no último olhar de despedida à vida, viu um rosto de caveira debruçado sobre a sua face, por onde as sombras da morte também se ia estendendo, amortalhando duas vidas, ligando duas almas, no mais lúgubre himeneu de amor.


Conto do livro Flagrantes ao Sol do Norte, publicado em 1929.


 
 
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