O HEROÍSMO DO BANDIDO – Santino Gomes de Matos
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 16 de jul. de 2022
- 9 min de leitura
Atualizado: 14 de out. de 2022
– É isso, seu sargento. Comigo ninguém tira leite com espuma. Se se botar pras minhas bandas, o angu tá feito e vosmincê já fedendo. Urubu inté morre de indigestão. Azar que abro, nem o diabo fecha.
Foi no meio da feira, cercado de gente, que cada vez mais acorria, pressurosa, no desejo de ver a arrelia, que admirei o Damião, no seu corpanzil de atleta, de ombros largos, os braços como toros, a face tostada, com um ar de ferocidade tigrina, quando mostrava os dentes limados, pontiagudos.
A coisa fora por pouco, quase nada. Algumas palavras menos conformes azedaram ao fartum da cachaça e saíra aquele "c d b" de todos os diabos.
O sargento, de sabre em punho, mantinha-se em distância, detido pela atitude ameaçadora do cabra, bamboleando o corpo, fastando, para logo avançar e recuar, em movimentos ágeis, o chapéu de couro descaído para trás, a mão dentro da camisa, ferrada ao cabo da faca, em via de sacá-la.
– Ora, Damião, me atenda. Seu sargento dispense por esta vez.
Estava finda a questão, com as partes devidamente satisfeitas. Ninguém perdera em dignidade e pouparam-se além disso a pele. Não eram homens que cedessem uma polegada. E o ditado lá diz: duro com duro, não faz bom muro.
O povo se dispersou. O incidente não passou de mero incidente, logo esquecido. Mas a imagem do Damião nunca mais saiu da lembrança, em toda a pujança de força, coragem e ferocidade.
– Não dê em bandido aquele cabra.
Um belo dia, sucedeu, infelizmente, o que se previra. Dois mortos entraram, em cruz, sobre uma cangalha; houve alvoroço, comentários, muita velha horrorizada e muito menino em torno. E o nome do assassino passou, de boca em boca, amaldiçoado por uns, elogiado da maior parte.
– Foi um tempo quente, dizia uma testemunha presencial. O "fecha" pegou "pru via" da Mundinha e a coisa pretejou logo. Damião foi homem como trinta. Quando os ferros alumiaram, pulou como uma cascavel assanhada e haja faca. Tinha um mundo de gente em "riba", mas resistiu a valer. Só quando viu que a corda quebrava do lado dele, meteu o pé na lamparina. A sala ficou escura que nem fundo de panela. E foi um horror de gente se pisando, uns gritando, outros chorando, um dia de juízo escrito. Quando acenderam a luz, demos com os mortos.
– Coitado! O Duta deixa sete "órfos", mas também quem lhe mandou meter-se em folia de samba! Cabra "baita" o Damião, cabra "baita"!
– Cumpro o meu dever, ajuntou o delegado. Sei que é malhar em ferro frio. Nem que mandasse cem, quanto mais dez praças. O crioulo é passado na casca do alho. Isso serve apenas par assanhar, como comida pouco à fome canina.
Dei muito pelos arrazoados do Parreiras. Quem melhor do que ele conhecia o Damião, seu cabra de confiança nas viagens que empreendia ao Piauí, vendendo a prazo missangas e fazendas.
Fosse necessário tomar à força um cavalo, um boi ou outra qualquer coisa, em pagamento das dívidas atrasadas, com que satisfação não agia seu guarda-costas, tanto maior, quando precisava esbordoar e ferir, afrontando embora a boca de uma "lazarina", apartando golpes das "parnaíbas" afiadas.
O Parreiras tinha razão. Nunca vira aquele cabra fraquejar e queria-lhe deveras. Mas o que lá ia, lá ia. Agora era delegado, cumpria o seu dever.
O Damião não veio. Os soldados voltaram sós e, além disso, "desinteirados". Dois se ficaram, na entrada de um boqueirão. E, se prosseguissem, não haveria mesmo quem contasse a história. Naqueles fundões, numa aba de serra desconhecida, até as onças dariam cabo deles. Cada moita era uma trincheira, não se gastava bala à toa: tiro e queda.
Todo mundo quis saber do resultado da diligência. Muitos se alegraram ao contemplar as algemas vazias. Eram para outro feitio de homem. O Damião, um cabra "desimpenado" daqueles! Tinha que ver.
Meses depois, corria fama outro nome célebre como o do Brilhante e do Silvino. O grupo formou-se naturalmente. Todos quantos tinham contas que ajustar no xilindró acorreram ao grito de revolta, de rifle em punho, dispostos ao que desse e viesse.
As queixas se sucediam, o clamor tornava-se geral. Raro era o dia em que não chegavam notícias de saque, assassínio e desvirginamento, tudo à sombra de um nome que passava pelas almas num calafrio de horror: Damião.
As mães tremiam, aconchegando ao peito os filhos indefesos; as virgens soluçavam de mãos postas para o céu e mais de uma viúva inconsolável clamava por vingança, no abandono de sua tristeza e de sua miséria.
Até quando durou esse estado de coisas, nem o sei, ao certo.
Uma tarde, em festivo alvoroço de homens, mulheres e crianças, regorgitou o largo da cadeia.
O tenente Marinho vinha de derrotar o famigerado grupo. Trazia nas cordas nada menos de dez facínoras, afora os que se ficaram, olhando o céu, por conta dos urubus. Fora uma carnificina horrível, de parte a parte. Batiam-se como feras os bandidos e se não lograram a melhor é que os soldados excediam em número três vezes superior.
Ansiava por ver o Damião, sem dúvida acabrunhado, perdido aquele ar de audácia e insolência, algemado, "inquirido" de pés e mãos. Mas o cabra não viera no rol dos prisioneiros. Morto? Também não o encontraram no meio dos cadáveres. Fugira certamente.
– Só sendo "pauta" com o mardito – resmungou uma velha, ao meu lado.
E quase se deram por nulos os resultados da diligência. Se falta a alma danada de todas as façanhas e crimes e sevícias.
O delegado, o Parreiras, falava ao tenente, com um ar de meio triunfo, um sorriso esquivo:
– Bem lhe dizia eu. O cabra é passado na casca do alho, sabe com quantos paus se faz uma canoa, não mete mão em buraco sem mais nem menos. Agora, adeus minhas encomendas. Anda de certo por onde o Judas perdeu a espora.
O tenente jurava como havia de trazê-lo, nem que fosse das profundas do inferno. Não tinha medo de mandingas, nem de orações ensacadas. Nunca nada disso lhe desviara a pontaria do rifle. Que o cabra tivera sorte, isso sim. Mas o couro já lhe não servia pra curtir.
E batendo na coronha da arma:
– Tem cá o sinal da fábrica. Até muito dentro do mato, fomos encontrando marcas de sangue e um soldado que o provou, achou-o mais amargo do que fel. Era sangue dele, não resta dúvida.
Foi grande surpresa para mim e não menor para todos, a notícia de que o Damião estava na "chave".
O tenente Marinho não era de caçoadas, na verdade. Se bem o dissera, melhor o cumprira e com que exatidão. Logo um dia depois.
Na cadeia, a guarda tinha sido aumentada. Lá para tarde, cessara qualquer movimento de povo, na curiosidade de pressentir (já que o proibiam de ver) o famoso bandoleiro, para além das grades da prisão.
A pretexto de chamado, para o meu ofício de rábula, consegui transpor os corredores malcheirosos, até a solitária, onde uma patrulha fazia ecoar fortemente os grossos tacões das botas, dando de rijo, nas lágeas da entrada.
Suspenderam o alçapão de ferro maciço e, de gatinhas, penetramos no estreito calabouço.
O Parreiras acompanhava-me. E o bandido, mal o reconheceu, naquelas meias trevas, tentou soerguer as pesadas cadeias no intuito de estirar a mão:
– A bênção, meu padrinho.
Era a força de um hábito, outrora reiterado, que a tudo resistira e se verificava espontâneo, como se à flor do espírito sempre lhe sobrenadasse, a despeito dos anos e de tantos instintos ferozes, em pleno desencadeamento, afogando qualquer boa intenção que a alma ainda pudesse dar de si agora, totalmente empedernida e bestializada.
Pedimos que nos contasse as circunstâncias de sua prisão. Não se fez rogado. Pelo que deduzi, à medida que falava, parecia repastar-se deleitosamente, na evocação de todos os pormenores.
Vinha de três dias a marcha exaustiva, perseguidos de perto, por cerros e valados. Tinham feito abortar duas tentativas de cerco, com pequenos tiroteios, a esmo, sem resultado. Mas não podiam ir longe, vencidos da canseira, com as provisões de boca quase esgotadas.
Entrincheiraram-se num barranco, à margem do Riacho do Meio. A posição era ótima. À retaguarda, um contraforte da serra do Camará. Na frente, um capoeirão de mato ralo, grimpando os morros, que a estrada atravessava numa linha estreita, única e indesejável.
O Zé Braúna ficara empoleirado num olho de oiticica, para dar o aviso. Achou grandemente temerário que enfrentassem tamanho número de soldados. A volante tinha sido reforçada.
– Embirrei. Quem for mulher, dê de mamar ao rifle. Daqui ninguém arreda pé. Hei de mostrar com quantas meadas se faz uma tarrafa.
A corneta estralou, perto. Gritei pra rapaziada:
– Mão segura e pontaria certa. Atirem no meio da testa, pra não estragar a abotoadura. Engoli um gole de cachaça e foi tempo.
As balas ziniram, por duas ou três horas. Começou a nos faltar munição. Saltei do barranco, com a faca em punho. Todos me seguiram. Os soldados atiravam na arca do peito, com o cano da arma espetando a gente. Não morri devida à reza forte que tenho. Foi uma esquentada grossa. O sangue empoçava, corria, ver cobra de coral, no meio das folhas.
Quando dei por mim, estava quase só. O chão lastrado, "coiado" de gente. Já era a boquinha da noite. Guardei o punhal no bucho dum "inspeçado" e escorregue que nem muçu, pra dentro do riacho. Saltei de pedra em pedra e me escondi numa loca que a água cavou do lado da barreira. Estava escuro-escuro. Tomei num carreirão danado, até cair esbaforido.
Aí comecei a "maginá". Uma coisa esquisita se atravessou na minha ideia. Ora, Damião, deixa de bobagem "home", dizia comigo mesmo. Depois com toda a força acordando o silêncio: – deixemos de bobagem – e para se distrair, voltava com o espírito ao local da peleja.
Via rostos ferozes, no desespero da morte, em contorções: um que baqueava, outro que arrancava um punhal do peito, com o jorro de sangue e se arremeçava ainda na luta. E contemplando o céu:
– A essa hora, estão olhando o "setestrelo", menos o Perobinha, que comeu terra de borco, na baixada do riacho. Que cara, santo Deus! Agarrando as tripas sujas de lama, com uma "miganga" que até a morte há de ter se assombrado.
Os outros, sem dúvida, já entraram na disciplina a panos de facão. De uma "empreita", lá se foi toda a cambada. E ria, ria perdidamente.
Mas a coisa vinha:
– O que tu é é covarde. Morreram como homens, foram presos com honra. Bem quiseram abrir na unha, abandonando a luta, que era mesmo "causo" perdido. Entretanto, por tua causa, sustentaram a nota até o fim. E, quando menos esperaram, correste Damião, correste com medo, como qualquer "pomboca".
Fiquei "quaje" louco, "seu" moço. Eu, covarde? Quem dizia? Viesse até o "fute" e mostrava se não era homem "pra burro". Atirei murros em seco, descasquei, com a faca nua, os marmeleiros próximos, saltando e me agachando, como se estivesse em luta. Mas ao ficar mais calmo ouvia sempre:
– És valente, por que não morreste como eles? Tens é farofa!
Puxei os cabelos e só não me matei devido não me "alembrá" mais o ato de contrição. Depois veio uma vontade desmarcada de chorar, chorar até o diabo dizer basta. Estava um "troxa" de verdade.
Era a segunda vez que me acontecia. A primeira, foi quando cercamos a casa do Chico Terto. Sustentou o fogo até ser varado de um lado para outro. A filhinha de oito anos pôs então tanta dor nos olhos, abraçada ao "esfalecido" que não "arresisti". Se não me botasse pra fora, caía ali, de joelhos, chorando como menino novo.
Nessa noite, era a mesma coisa. Mas passava, passava. Tentei de novo pilheriar.
– Se os urubus ainda não lhe deram em cima das sobrancelhas, estão farto de espiar o Cruzeiro. Bem há de gostar o Rufino da Mata, na sua devoção de beato do "Padrim Cisso". O Vicente Peba terá "tombém" aproveitado bastante. Só lhe fala a viola; estrelas, tem uma "inquantidade".
De repente, de dentro de mim mesmo, lá vinha a voz:
– Covarde, covarde! Foste mais medroso do que uma cotia. Devias ter morrido, como morreu o Zé Grilo, às facadas com dois soldados, espetando-se no sabre de um para poder abraçá-lo e pipiná-lo nas costas, mais miúdo que furo de ralo. Antes como o Caipira que brigou até chegar aos pés do tenente, onde se entregou às cordas. Cobarde.
Pois vamos ver, pois vamos ver – gritei para a escuridão, de punho cerrado.
Quando os galos "amiudaro", botei os pés na estrada e vim me entregar.Aqui estou, "seu" moço, muito "sastifeito". Ninguém há de dizer que tive medo. Brincava com a morte, como quem brinca com "buso" da praia. As grades é que não queria nunca. Mas, porém, ninguém dirá que alguma coisa já me fez "sobrosso".
Fico às vezes "desimpaciente" com estes "sordados", sempre a gente "de olho", como se valessem nem dez reis de mel coado! O que sinto é não poder fazer linguiça das tripas de um!
Soltou uma risadinha perversa, mostrando a fila dos dentes limados.
Despedimo-nos. E como lhe deixasse algum dinheiro, agradeceu, levantando a face iluminada de satisfação, como se a consciência lhe estivesse tranquila por todo o mal que praticara, pela resenha de tantos crimes barbaramente cometidos, só com aquele ato, do mais alto e mais original heroísmo, que o inocentava diante de si mesmo e lhe restituía o direito de se sentir o forte dos fortes, valoroso e destemido, embora entre as estreitas paredes de um calabouço para o resto da vida.
Conto do livro Flagrantes ao Sol do Norte, publicado em 1929.
