RESENHA LITERÁRIA
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 17 de set. de 2022
- 8 min de leitura
Atualizado: 30 de jan. de 2024
Ensaio de Yone Passaglia Gomes de Matos, apresentado no Seminário Educação & Terceira Idade, posteriormente publicado pela FUMEC em agosto de 1999.
É com um misto de emoção e apreensão que aqui me encontro. Emoção pelo elo de afetividade que me liga à Fumec. Apreensão pela responsabilidade de levar a bom termo a tarefa que me foi confiada, num evento de que fazem parte representantes da cultura nacional e internacional.
Confesso que hesitei em aceitar, devido aos entraves causados pela dupla deficiência: auditiva e visual, com que a adversidade houve por bem presentear-me nos últimos anos. Sinto-me assim na estranha contingência de não ler o que escrevo e de participar de debates com ouvidos moucos. Não pude, entretanto, esquivar-me, diante da solução de alguém substituir-me na leitura do trabalho.
Além disso, sou a mais idosa – não a mais velha – das alunas da Escola e considerada por minhas colegas um exemplo a ser seguido. Não sei bem o porquê. Será pela maneira como costumo enfrentar desafios e remover obstáculos, sem perder o otimismo da convicção de quem luta para vencer, com a determinação inócua de um D. Quixote? Ou será porque acreditam que carrego comigo micro-organismos da longevidade e querem ser beneficamente contaminados?
Pediram-me uma página literária. Talvez um poema, talvez uma crônica, deixando fluir a imaginação no campo das divagações. Mas os temas em discussão no Seminário são de tal relevância que me sinto tentada a entrar em seara alheia para algumas considerações pessoais.
Serei breve e não avançarei muito no terreno que outros percorrem e percorrerão com desenvoltura e competência.
A Educação – base sobre a qual se constrói o edifício da Sociedade – tem-se revelado, através do tempo, concomitantemente, causa e efeito da grandeza ou da decadência de povos e nações. Quanto maior for o valor que lhe atribuam os governantes e a responsabilidade com que a encarem, tanto maior será o país ou o Estado.
A História comprova esta verdade, assinalando os momentos de grandeza e de obscuridade, que correspondem à seriedade ou descaso com que é tratado o problema da Educação nas diversas culturas que englobam o Oriente e o Ocidente.
A Civilização Ocidental teve como berço a Antiga Grécia. Ali, o espírito humano atingiu um esplendor tão intenso que iluminou os séculos que se sucederam. O legado que nos foi deixado pelos filósofos, sobretudo Sócrates, Platão e Aristóteles, é um patrimônio que ainda hoje norteia o pensamento moderno. Aristóteles chegou a dizer que a diferença entre um homem sábio e um ignorante é a mesma que existe entre um homem vivo e um cadáver.
Dessa era remota para cá, a História vem-se desdobrando em períodos áureos e outros de obscurantismo, mas sempre com o problema educacional incrustado nela, exigindo soluções. Para tanto, não têm faltado grandes nomes, como Rousseau, Claparède, Pestalozzi, Montessori, Piaget, tentando equacioná-los por meio de notáveis métodos de ensino. Porém, em muitos países, a maior barreira para a educação do povo tem sido a econômica, que se contrapõe a qualquer projeto.
No caso do Brasil, o caso é ainda mais grave, pois não temos estatísticas confiáveis, uma vez que se considera alfabetizado o indivíduo que apenas assine o próprio nome.
Proclamada nos programas eleitorais como prioridade do governo, logo após a posse as promessas são esquecidas e a educação passa a ser tratada com tal leviandade e descaso pelas classes governistas que se tem a impressão de que elas realmente não conseguem compreender a extensão da sua importância e o perigo das danosas consequências que podem advir desse descaso. Aí está a mídia a nos mostrar, com frequência, como é tratado o ensino público em nosso país, em flagrante desmentido às propagandas do governo.
Quadros deploráveis de escolas públicas carentes de mínimas condições de higiene e segurança, dominadas pelo medo dos fantasmas da violência e das drogas que lhes rondam as portas. Nas classes superlotadas, os alunos chegam a esmurrarem-se para a posse de uma carteira. O ensino é ministrado em doses homeopáticas e em tempo escasso, com turmas em revezamento contínuo, para aparentemente cumprir a determinação constitucional de não haver crianças fora da escola.
A interpretação distorcida da Lei dos Direitos da Infância e do Adolescente leva à indisciplina que chega ao disparate de jogo de cartas nos bancos escolares, enquanto o professor, sem meios de se fazer respeitar, cumpre sua carga horária. Que tipo de aprendizado pode resultar em tal situação?
E que dizer do respeito ao dever à Educação, em sentido mais amplo, na abordagem holística – o ser como um todo, na sua individualidade e no seu universo como célula viva da sociedade?
Isso se perpetua e vem de longe. Tenho ainda na memória o espetáculo doloroso do fechamento da Escola Normal Oficial do 2º grau de Uberaba, que equivalia a um curso de ensino superior, pelo então governador Benedito Valadares, sob a alegação de que o Estado precisava economizar.
De nada valeram as lágrimas e os protestos. O Estado precisava dos minguados recursos aplicados no ensino para "coisas mais importantes". Naquele tempo, o ingresso em curso superior era muito difícil, pois só havia faculdades nas principais capitais dos estados brasileiros, de modo que a elas só tinham acesso os bem aquinhoados de fortuna. Os demais tinham de contentar-se com os cursos primário e ginasial (denominados depois de ensino fundamental e médio). Por isso mesmo, o ensino era encarado com a maior seriedade, cuidando-se de ministrar aos alunos a melhor qualidade de ensino.
As escolas davam o melhor de si no preparo dos jovens. A luta pela vida começava cedo. Mas os meninos e meninas que apenas podiam cursar o primário, ao completar o 4º ano já tinham uma base suficiente para iniciar sua vida. Saíam dali capazes de redigir uma carta ou uma ofício sem erros gramaticais e na matemática resolviam com desembaraço problemas das quatro operações, de frações ordinárias e decimais, de regra de três, de juros simples e compostos. Recebiam noções básicas de higiene, de ciências, de história e geografia, além de instrução moral e cívica.
Cultivava-se o sentimento de brasilidade, exaltado pelo canto de hinos patrióticos. Datas como a da Independência, da Proclamação da República, Dia da Bandeira eram festivamente comemorados. Hoje tudo desapareceu.
O sentimento de fé e orgulho pela nossa terra vem sendo gradativamente repudiado como obsoleto e antimoderno. Fomos promovidos a cidadãos do mundo. Agora só se ouve o grito de entusiasmo "Brasil, Brasil!" nas competições esportivas internacionais. Enquanto isso, nos países do primeiro mundo, a educação é prioridade absoluta e o sentimento patriótico continua a ser cultivado e exaltado. Proclamam com orgulho a sua grandeza. E o povo está sempre pronto a defender os seus direitos e sua terra. Por que não os imitamos também nisso?
Quem calou a nossa voz? Quem fechou nosso coração ao apelo atávico da raça?
No meu tempo, o chamado Curso Normal (que formava professores), continha matérias como didática, metodologias de ensino, puericultura, psicologia, sociologia, história das civilizações oriental e ocidental, álgebra, geometria, desenho artístico, língua portuguesa, literatura brasileira e portuguesa, além do francês e do latim. Portanto, ao sair do curso normal, os professores estavam bem mais preparados que muitos do que hoje saem dos cursos universitários.
A qualidade do ensino, em todos os níveis, caiu vertiginosamente. Quando acordaremos?
Estamos às portas e um novo milênio. O século XXI inaugura a era da pressa, da urgência, do aqui e agora, dos desafios em que vencerão os mais aptos, os mais capazes e os mais preparados. Nossos relógios biológicos já se ajustam ao ritmo alucinante que o momento exige. Mas o Brasil, em termos de educação, retrocedeu.
Será que o destino deste nosso país promissor é ser devorado pela impiedosa globalização imposta a serviço dos superfinancistas que dominam o mundo?
Já pegaram nossas riquezas minerais, já não somos donos do nosso subsolo. Já levaram a comunicação. E estão a levar nossas preciosas bacias hidrográficas. Devoraram o que de melhor criou o nacionalismo. Já mataram nossos sonhos de grandeza. E como isso se torna mais fácil num país em que o cidadão não tem direito à saúde, à segurança e, essencialmente, à educação.
É tempo de acordar. É tempo de agir no sentido de transformar a globalização financista numa globalização humana, onde o cidadão não seja massificado, mas respeitado e enobrecido. Onde brilhem não as moedas sonantes, mas as valiosas moedas que se chamam Ética e Justiça.
Ainda há esperança?
Talvez a esperança possa nascer de iniciativas como esta que a Fumec, que em boa hora promove o Seminário Educação e Terceira Idade. Neste encontro de educadores e humanistas, e em outros que se realizam em diversos pontos do país, hão de surgir ideias mobilizadoras, capazes de reverter o quadro desolador em que vivemos. Ideias e atitudes que conjurem pregos como é o caso do intitulado "Acordo Unilateral de Aplicação de Recursos" , que – se consumado – ocasionará a desagregação da identidade nacional.
Alarmismo? Não! Consciência da realidade!
Vocês talvez estejam aí a ponderar: Que coisa espantosa! Em vez de ouvirmos uma página literária, estamos diante de uma velhinha revolucionária, pronta a entrar em ação... Nada disso! Estão diante apenas de uma cidadã que ama sua pátria e quer ver garantida a soberania nacional.
Quanto à velhinha, alto lá! Velhinha é palavra já expulsa do vocabulário geral. Não se admite mais que falemos em "velhas ou velhos". Falamos agora em Terceira Idade – eufemismo inventado para banir por completo toda a carga de negatividade que a palavra velhice carrega.
Lembro-me de que, quando o termo surgiu, há poucos anos, a grande escritora Rachel de Queiroz, orgulho da literatura nacional, repudiou-o, em magistral artigo. Achou-o ridículo e inoperante, dizendo que velho é velho, e não há como fugir à realidade.
Ela enganou-se. Bastou mudar a palavra e o milagre se fez. Todos os setores das atividades humanas renderam-se às possibilidades do novo ser que surgia das sombras. Do dia para a noite apareceram clínicas de geriatria, de plástica e academias de ginástica geriátrica. Multiplicaram-se os cursos de autoconhecimento e de técnicas de memorização. Criaram-se linhas especiais de cosméticos e produtos dietéticos destinados aos maiores de 60.
O crochê e os chinelos foram trocados pelos clubes da maturidade, onde o lazer e os divertimentos proporcionam o convívio de pessoas da mesma faixa etária. As livrarias encheram-se de obras científicas e de ficção sobre prevenção e regressão de males que surgem com o aumento da idade.
Num instante, todas as ites e oses desapareceram: labirintites e osteoporoses, artritres e artroses e outras que tais perderam de vez a supremacia que ostentavam na classe dos setentões. Até os legisladores começam a se sensibilizar com a nova classe de cidadãos, como é o caso da lei municipal de incentivo à cultura, que permite cinema gratuito aos idosos.
O ensino superior também se mobilizou no sentido de investir no novo ramo. A Fumec, com ampla visão de futuro, criou o Núcleo de Ensino da Escola da Terceira Idade – o NEETI. Logo se apresentaram inúmeras candidatas, ansiosos por atualizar seus conhecimentos e, ao mesmo tempo, estabelecer novos laços de amizade.
É interessante notar a adesão feminina ao movimento renovador. Quanto aos homens, ainda não se apresentaram. Talvez porque, sabiamente ocupados em conquistar brotinhos, retardem sua chegada à Terceira Idade.
A dinâmica das aulas, onde professores e alunas trocam experiências, num clima de saudável de camaradagem, a afetividade que reina entre colegas e estagiárias, a preocupação da diretoria em manter o alto nível dos assuntos abordados – tudo isso garante um sucesso absoluto. O otimismo se revela na espontaneidade dos sorrisos e nas vozes que se afinam no coral "Alegria de Cantar".
Educação e Terceira Idade tornam-se, assim, dois polos de uma cadeia que se interliga, fechando o círculo da existência humana. A Educação, que se inicia na infância, prolonga-se até a velhice, na busca da sabedoria.
Somos, portanto, estudantes da terceira idade, que continuam atuantes no processo participativo do desenvolvimento social, com a sensação criativa do rejuvenescer, o rejuvenescer de cabeças prateadas, coroando sonhos que não morrem.