ROMANCE VIVO – Santino Gomes de Matos
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 17 de jul. de 2022
- 9 min de leitura
Atualizado: 14 de out. de 2022
Da janela da elegante vivenda, muitas vezes perdia o olhar sobre o telheiro do casario e adivinhava outras tristezas iguais à sua, amorfas, sem cor, sem um motivo determinado, a cujo pensamento do fosse dado chorar.
Dominava-a então a volúpia do sofrimento. Armava casos fatais na imaginação – doenças, mortes, desastres e já se via mendiga, com uma placa de metal ao peito, enxotada de porta em porta: o peso da humilhação, a incerteza dos óbolos escassos, uma trapeira miserável, onde apodrecessem farrapos, no convívio repulsivo dos arganazes.
Percorriam-na calafrios. Voltava a considerar os tetos avermelhados, nos canteiros dos jardins. Perguntava de si para si, se algumas daquelas flores não sofriam acaso do seu mal, pendidas, dentro do céu morno da tarde. E tinha por maior sofrimento o sofrimento do que não se vê, o desejo de um bem que o passado não guarda, que o futuro não promete, que não se sabe mesmo onde esteja, senão que está fora de nós.
Quantas daquelas rosas e violetas talvez suspirassem pela vala dos pauis, onde, conspurcadas, tivessem a sensação de uma dor verdadeira. Agora, apenas sentiam a melancolia de um desejo vago e impreciso, entre o estofo dos canteiros e as lágrimas de ouro das estrelas: uma tristeza paradoxal entre bens e por isso mais terebrante, como se viesse de tudo, em conspiração tremenda das coisas.
Aplicava o caso a si mesma e mais triste, mais penserosa, envolvia-a o crepe da noite.
Tinha por hábito ir recebê-lo ao portão. No abandono do gesto com que lhe entregava o rosto, na maneira com o beijava, automaticamente, bem o denunciava.
Depois do chá, seguia-se uma palestra sem interesse, tropeçando nas meias palavras, parando na reticência dos monossílabos, para se arrastar outra vez, amolentada, sem graça e sem cor. Às mais das noites, ele lia jornais. E para esta hora, ela deixava sempre o serviço de bordado, que durante todo o dia, todo um longo dia, permanecia esquecido.
Entregava-se aos romances. Almoçava e jantava sozinha. Irritava-lhe os nervos o barulho do talher no prato, apenas intercalado de algumas frases lacônicas, à criada:
– Olha que o virado está sem sal! E as verduras que esqueceste! Traze o café!
O marido comia em qualquer bar, com tempo de descansar só à noite. Mas não lhe faltava nada a ela: tinha os menores caprichos satisfeitos. Pagava-se daquele isolamento, nos teatros e nos clubes, como lhe aprouvesse, e mais de uma feita rejeitou amores fáceis e convenháveis, por míngua de sensações que neles não encontrava.
Também não amava o marido. Isto é, amava-o a seu modo – não a aborrecia com interpelações, proporcionava-lhe franca liberdade de agir, a seu talante e tudo à mão, do que desejasse.
Era triste, mas não tinha razão para ser infeliz, sem se sentir todavia venturosa. Um anseio de alma que tem quanto deseja e não atina desejar o que não tem. Mas, aquilo que por vezes se pensa para além do horizonte, quiçá num mundo imaginário, criado pela fantasia, está simplesmente a dois passos e basta que o acaso mova a um tropeço de cego, por que a mão tateie o objeto ainda não entrevisto.
O acaso? Nem podia ter sido de outro modo. A princípio, sorriu. Era um romance como tantos outros. Mas, a pouco e pouco, foi se deixando interessar. Já uma e outra ocasião, encontrava-se a fugir atrás de uma passagem, de uma ideia, que lhe fizera impressão. Foram-se tornando reais, as personagens. Lúcia, a protagonista, tinha-lhe o mesmo nome. E um dia, como relesse pela centésima vez o nome do autor, rasgou-se-lhe um véu de ante os olhos.
O Salvador, um rapazinho de óculos e terno claro, que lhe fora apresentado na recepção das Guimarães. José Pires Salvador – ele mesmo! Namoro fútil, simples flerte. Recitava versos e tinha uma chama de inspiração nos olhos, quando lhe fez a clássica declaração. Pagou-lhe com alguns beijos, não se lembrava, mas devia ter-lhe pago.
Viu-o depois, em diversos saraus e "dancings", sempre dona de sua preferência. Chegou mesmo a ter ciúmes. Rira-lhe ela nas bochechas. Os olhinhos debaixo dos óculos fuzilaram acesos e acabou coçando uma das costelas, por disfarce. Impagável.
Com o tempo, a sua imagem juntou-se às demais, de quantos lhe requestaram as atenções. Envolvia-as uma onda de esquecimento, menos por vontade própria, do que pela volubilidade com que lhe passaram diante dos olhos, sem tempo de se fixarem. De todas, era a única capaz de recompor no espírito e isso só devido à circunstância de reler, uma infinidade de vezes, o mesmo nome. Que surgisse dos escondidos da memória e se lhe apresentasse como velho conhecido, isso nunca.
Já chegava a mais que simples conhecido, agora, que se capacitou ser a Lúcia do romance, ela própria. As circunstâncias, perfeitamente iguais, da primeira apresentação, do amor levado no burburinho dos salões no aturdimento das danças, com beijos furtados, apressadamente, entre duas cortinas. E nos traços gerais que dera da heroína, reconhecia os próprios traços, comparava-os ao espelho, de livro na mão, num estudo demorado, numa ânsia de certeza, que se mudava alfim, em alegria estonteante, reconhecendo-se descrita naquelas páginas.
Amou-o loucamente. Já agora tinha o direito de se sentir infeliz, já havia um ponto negro onde a imaginação se fixasse, adivinhando além, uma entreaberta de luz. Veio-lhe a ideia do divórcio. Precisava um motivo e redobrou de exigências e nunca mais o marido a encontrou em casa. Não faltava em bailes, recepções, teatros. Ele, pela manhã, como de costume, beijava-a nos olhos, sem uma palavra, com a pasta já debaixo do braço.
Até que um dia pareceu resolvido. No próprio quarto de vestir, veio dizer que precisava falar-lhe. Alvoroçou-se num júbilo de liberdade ansiosamente esperada. Mas, na sala, o mesmo gesto calmo, o charuto apertado entre os dedos, cientificou-a de que obtivera umas férias e, se de seu agrado, poderiam passá-las fora dali.
Não encontrou evasiva, senão a de um rompimento extemporâneo e escandaloso.
Aquiesceu.
Demais, a aventura não ia além de si mesma, trabalhada só por si. Queria pagar com outra, a surpresa daquele livro. Quando libertada de quaisquer compromissos, então se apresentaria ao Salvador e lhe poria o coração aos pés. Não o via ainda, nem procurara vê-lo. Conversava-o naquelas páginas, ia-lhe empós das idealizações atrevidas de felicidade, acompanhava-o numa digressão deliciosa pelos domínios do sonho e se entristecia e chorava com ele, respondendo ao eco do seu desespero:
– Vinde, vinde, eras quanto me restava, na esterilidade do viver.
Ali, naquela chácara, as árvores ajudavam-na a sonhar. E muitas vezes, olhando a água do repuxo, em iriada neblina, ao sol, sentia mais negra a escuridade da alma, e a nostalgia que a tomava vinha aumentada do repouso e da suavidade de todas aquelas coisas.
Quando tristes, estendemos essa tristeza a tudo quanto nos cerca. Mas, infelizes, a infelicidade é unicamente nossa. Num louco egoísmo, não na deixamos ultrapassar os limites de nós mesmos, e a contemplação dos cenários ambientes se nos afiguram estes, num repouso de paz dulcífica que agrave, pelo contraste, o padecer do espírito.
Acabou por dominá-la, natural fraqueza. Tão isolada, tão só, já se cansava de repetir aos pássaros e aos ramos o segredo de sua vida. Não tinha ninguém a quem dissesse que era uma dessas heroínas que tantas vezes sonhara, em menina, nos romances prediletos. Via-as debruçadas do balcão florido, ouvindo aos menestréis as trovas de amor que as sagrassem imortais, repetidas mais tarde por toda parte e lhes tornassem o nome um símbolo, a presidir o enlevo dos corações apaixonados.
Como as invejava! Como ansiara também por um trovador, suspirando queixas para a sua janela, às latescências do plenilúnio! Nesse tempo ainda morava na cidadezinha natal e tinha os dezesseis anos característicos. Depois, a vida mundana num grande centro. As novas impressões que de pronto eliminam as antigas, com a mesma presteza com que passam e desaparecem, dando margem a que o espírito volte à fonte de saudades da vida pregressa. E era a recordar, que a miúdo se detinha diante da imagem de um cantor inspirado, de quem fosse a musa de eleição.
Casada, os sonhos se esvaeceram, sem a probabilidade, ao menos, que os amparasse. Senão quando, entre mãos, ali o tinha, o romance de uma vida, a história de um coração, vivendo e palpitando só por ela, derramando-se num poema de amor e de saudade, que a endeusasse aos olhos de todas as gerações.
Não se comportava em si. Sentimentos encontrados a invadiam: um contentamento arrebatado que tocava as raias da tristeza, que ia mais além, achando-se infeliz, muito infeliz, no seio da própria alegria.
Lembrou-lhe o marido.
As coisas inconscientes, amoldamo-las à feição nossa, vivem por nós, do que lhes emprestamos em movimentos e cores e temos a sensação de que nos ouvem e compreendem. Afinal de contas, ainda estamos dentro de nós mesmos. Só um espírito será o respiro de outro espírito, só um coração será capaz de receber a confidência de outro coração ou viver-lhe as emoções. Ainda quando esta confidência não vá além de um sentimento que se verifica, sem se saber de causa íntima que o determina.
De aí por diante, liam juntos, aquelas páginas. Sentia-se aliviada, repartindo com o marido as próprias comoções, de que bem lhe notava um reflexo, no semblante atento e pensativo.
Nas passagens de efeito, carregava a voz, possuída de estranha exaltação e não raro, terminava a frase com um soluço, a custo estrangulado.
Ele se levantava, dava alguns passos, colhia de um galho mais baixo ramos da mangueira em flor e voltava a se estirar na preguiçosa olhando, abstraído, as manchas de sol que escorregavam dentre as folhas.
Um dia, Lúcia achou de observá-lo à socapa. Quem sabe andava já roído de desconfiança, se não de posse de toda a verdade?
Num conceito atrevido, o autor se expressava: "Todas as venturas, embora as mais sãs, não valem sem o amor, as desgraças e os infortúnios deste". E mais adiante: "Se o objeto dos nossos anelos a outro já pertence marcar-se-ão a sangue os passos da existência. Mas, como se adivinha o sol, mesmo através das maiores cerrações, um frouxo de luz, da palidez de um sonho amortalhado, entrará as ruínas do nosso coração – uma lembrança, uma saudade".
Era toda olhos para ele. Não se comoveu; só com os lábios, pronunciou as palavras. O marido nem deu por isso. com um vinco aprofundado na fronte, alheiava-se, muito para longe, no gesto de quem tem a alma de braços estendidos.
Teve a certeza de que ele também amava, também escondia um motivo dentro da alma e o que lhe parecera reflexo dos próprios sentimentos vinha de fonte verdadeira, no seu coração dele.
Enciumou-se. Devia ser tão belo o afeto daquele homem, seco, quase ríspido, agindo a uma vontade que não se torcia nem abrandava. Parecia entaliscado dentro de um molde, no sorrir, no andar, nas próprias carícias, parcimoniosas, com feição única, imutável.
Julgava-o inacessível a afetos assim, da natureza que agora lhe conhecia, dentro das linhas de formalidade que emprestavam um cunho de obrigação a quanto executava. Sem dúvida, o poético de um recanto solitário, entre árvores, mais chegado à natureza, com pássaros e flores, lhe desentorpecera as cordas sensitivas da alma, embotadas por sensações outras, de cálculos e operações. O romance fizera o resto.
A quem amaria? Aonde se iam os seus pensamentos naquele olhar perscrutando o vácuo, querendo como ultrapassar o limite do horizonte?
Fugir-lhe-ia, com certeza. Cuidava tão pouco dele. Era automática, quase protocolar, no tratamento que lhe dava. Ao seu retraimento, retraíra-se também. Deixou tudo à conta da incompatibilidade existente entre ambos e não curou de trazê-lo, nem mais próximo, nem mais afastado de si mesma.
Envolveu-se no tédio da própria vida, sem se queixar de ninguém, presa do desânimo de quem não age porque não pensa e não pensa porque não quer. À leitura daquele livro, cedera à lei do menor esforço. Era um amor que se lhe antolhava ardente e sincero, enchendo o vazio do seu coração, ao mesmo tempo que lhe realizava o sonho utópico da meninice: via-se celebrizada nas páginas de uma novela. Aceitou-o incontinenti, no delírio de ressureição das mais queridas aspirações, que tinha por mortas.
Nem se dera tempo para a análise de que lhe oferecia com a alma, o renome, a celebridade. Só agora, via o Salvador, com olhos de ver, através das recordações: todo ossos, as faces chupadas, as pernas dançando dentro das calças largas, o jaquetão muito comprido, açoutando-lhe os quadris murchos, ao andar. Que feio que era!
Contrapunha-se à imagem do marido, nas suas linhas de elegância e de beleza máscula: alto, simpático, com um toque de distinção nos menores gestos.
Viu quanto o amava, talvez porque fosse perdê-lo, talvez porque se lhe revelassem as qualidades de coração que até aí lhe desconhecera. O certo é que o amava e não podia consentir que ele o ignorasse e desviasse para outra as atenções.
Armou uma cena de efeito. Estudou-a minuciosamente, durante longa parte da noite. Manhã cedo ainda, vestida no roupão de dormir, tendo nos olhos a quebreira da vigília, iria procurá-lo, abraçando-lhe os joelhos, faria a confissão de tudo, tudo. Era sob a mangueira. As patativas chilreavam nos ramos; o sol enviava uma seta de ouro através da folhagem e não duvidava que a brisa viesse despencar flores sobre suas cabeças ao beijo que lhes abriria novo pórtico à vida.
Nada disso aconteceu. Sucedeu que continuara a ler, do mesmo modo, o romance. Mas, para Lúcia, as palavras não eram mais do autor; eram do marido, que a sentia perdida, afastada de si, apesar de tão perto; que lhe entregara a própria vida e nem uma flor ainda vira medrar, ao culto de sua mão, que a enfeitasse e garrisse.
E ele? Fez o que devia, fez o que podia fazer, naquelas circunstâncias: abriu-lhe o coração.
Uma cabeça que se inclina sobre o ombro, um braço que cinge, uns lábios que tremem, retendo beijos... Pouco levou que o livro fosse relegado por inútil. Viviam, na verdade, um romance infinitamente mais interessante, sem criações fantasiosas, com cenários naturais, dentro da realidade.
Outro dia, dei com o Salvador no café Aurora. Ao lado, uma cativante menina, toda de luar e sol. Há muito não nos víamos. Entre dois abraços, apresentou-me d. Lúcia Facundo que, mercê do seu "romance vivo", se lhe convertera na mais extremosa das esposas.
– Venci-a com a pena e com o coração, disse, ajeitando os óculos.
Que sirva de lição a todas as Lúcias. Excusa comentário.
Conto do livro Flagrantes ao Sol do Norte, publicado em 1929.
