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VIAGEM AO REDOR DOS 90

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 16 de jul. de 2022
  • 6 min de leitura

Atualizado: 30 de jan. de 2024

Artigo de Yone Passaglia Gomes de Matos, publicado no jornal Degrau em julho de 2004.


Quando escrevo para o nosso jornal, tenho por costume escolher temas da atualidade. Hoje, todavia, atendendo a pedido dos colegas, trato de um assunto pessoal. É que estou comemorando o meu nonagésimo aniversário. 90 anos e ainda aqui?


Exatamente, 90 anos e ainda aqui. (E não levo nenhuma vantagem, pois estou devidamente informada de que mais de 25 mil anciãos acima de 100 anos enriquecem a atual paisagem social brasileira.) Entretanto confesso que, quando completei os 60, comecei a ficar encabulada, achando que estava ocupando indevidamente um lugar no mundo. E, mentalmente, inclinava-me para a direita e para a esquerda, pedindo desculpas. Trinta anos depois, sinto-me confortavelmente instalada no posto que me foi determinado e no qual ficarei até quando Deus quiser. Mas vamos ao que importa, cumprir a promessa que fiz num momento de brincadeira e que agora me é cobrada: falar sobre esses 90 anos de vida e dar uma “receita” de longevidade (missão difícil para pessoa um tanto tímida, que não gosta de falar de si mesma).


Para desincumbir-me, recorro à sabedoria do mestre chinês Lao Tsé, criador do Taoísmo, em cuja filosofia estou iniciando os primeiros passos: “O caminho é o vazio e o seu uso jamais o esgota.” Com efeito. Colocamos janelas nas nossas casas, mas é através do vazio delas que vemos a paisagem. A argila é trabalhada na forma de pote. Mas é no vazio do pote que conservamos a água. Assim, da existência vem o valor, e do vazio vem a utilidade. Por isso, “quem segue e realiza através do Caminho, adquire o Caminho.”


Fico a pensar no misterioso caminho da existência humana, que temos de percorrer do começo ao fim. Caminho traçado por mãos invisíveis, a partir do insondável. Caminho a ser vencido por etapas: infância, juventude, maturidade, velhice. Para alguns, o caminho é mais suave, ladeado de árvores com frutos saborosos e fontes murmurantes. Para a maioria, contudo, é repleto de obstáculos, com escarpas e precipícios. O terreno é pedregoso. Não é por acaso que o nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, nos avisa: “Tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra.”. Na verdade, encontramos não apenas uma, mas inúmeras. Desde pedregulhos que magoam a planta de nossos pés, até rochas irremovíveis. Mas é Fernando Pessoa, o amado poeta português, que vem nos consolar: “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena.” Apesar dos percalços do caminho, vale a pena! E conseguimos seguir em nossa jornada porque não estamos sozinhos nessa estrada. Há inúmeros transeuntes.


Quando iniciamos nossa caminhada, estão à nossa espera um maravilhoso casal – nossos pais – que nos recebem felizes, nos acalentam, nos alimentam e cuidam de nós. Dão-nos carinho e segurança. Ensinam-nos os valores maiores do bem, da justiça e da fé. Procuram fazer de nós criaturas responsáveis e aptas para enfrentar a vida, no exercício dos ideais cristãos. Ofertam-nos o amor mais verdadeiro, aquele que não exige retribuição e que resiste a tudo e fica para sempre, até o último momento da vida. Em seguida, surgem os outros membros da família – avós, irmãos, tios, primos – os vizinhos, os amigos, todos concorrendo para a completa felicidade infantil. Prosseguindo, os professores, tão importantes em nossa juventude, e as colegas. Mais tarde, os alunos, para quem transmitimos os conhecimentos e valores adquiridos. De repente, o grande amor, que nos leva ao casamento e que vai durar para sempre! Amor inquebrantável, capaz de vencer tempo e espaço. E quando surge a dádiva dos filhos, começam novas histórias dentro da nossa história...


Na terceira etapa da vida, a maturidade, é o tempo em que a pessoa sente-se segura de si, conhecendo a si própria e avaliando as suas potencialidades. Com os filhos encaminhados, sabe o que pode e o que quer. E faz. É a fase das grandes realizações na arte, na literatura. O gosto se define e as habilidades se aperfeiçoam. É uma fase duradoura. Vai deslizando devagar...


O trabalho elaborado no correr dos anos é feito da argamassa de mil e um ingredientes, em que predominam, em contraponto, a alegria e o sofrimento. Sem dúvida, a vida – caixa mágica de surpresas – tem seus próprios planos, que nem sempre coincidem com os nossos. Quando menos se espera, vemos a bússola de nossa vida virar-se para “nortes” inesperados. Por vezes, aparecem-nos imprevistos agradáveis, como uma viagem, uma mudança de domicílio. Rejubilamo-nos com as novidades. Outras vezes, porém, da caixa de surpresas, o inesperado chega em forma de decepções, de terríveis adversidades, de doenças e de insuperáveis perdas. Nesses momentos, sentimo-nos perdidos, desamparados e, não raro, a vida parece perder o seu próprio sentido. Depois, com o apoio solícito dos familiares e dos amigos imprescindíveis, com a ajuda também do tempo – bálsamo divino – vão-se enxugando as lágrimas, cicatrizando-se feridas, injetando-se ânimo. Readquirimos a serenidade. Podemos então voltar nosso pensamento para Deus e, embora com o coração dilacerado, dizer: “Aceito, Senhor, a Vossa vontade!” Aceitação e não resignação. A palavra resignar traz uma conotação perigosa, um sentido de algo morno, passivo, inerme, infrutífero. Quem apenas se resigna, abdica do dever de lutar. Encolhe-se e se enrola no próprio casulo. Não! A vida é luta, é evolução, é um desdobrar de energias. Urge, pois, sepultar a resignação para fazer que dela surja a verdadeira aceitação dos desígnios de Deus e, a partir daí, como uma nova fênix, renascer das próprias cinzas. Como consegui-lo? Somente pela verdadeira fé, fruto da reflexão e da coragem: coragem de esquecermos da nossa própria dor por amor ao próximo.


Bem, alcançamos enfim a quarta e última etapa do caminho: a velhice. Chegamos a ela com uma grande bagagem. Mas é hora de irmos abandonando tudo quanto é supérfluo, para ficarmos apenas com o essencial. Na velhice, acontece um fenômeno compensador: quanto mais o corpo se debilita, mais se fortalece o espírito. E, ao chegar aos 90, percebemos que essa coisa chamada passado não existe. O pretérito está inserido nas células da nossa memória e não desaparecerá nunca. Tudo o que foi e o que é são uma só coisa. Tudo fica e nos acompanha...


Passo agora a responder à pergunta que sempre me fazem: Como chegar aos 90 com a mesma disposição para viver que tinha quando jovem, com a mesma curiosidade para aprender e crescer interiormente, com a mesma coragem para lutar contra as adversidades e as limitações?


O meu segredo é que nunca tive medo de envelhecer. Cheguei assim, simplesmente, sem mesmo notar. Eis que os 90 aparecerem e eu nem me surpreendo. Penso que se tivesse contado de um a um, não teria chegado à metade do caminho. Como não o fiz, estou aqui para dar a vocês minha receita:

1. Sair da cama ao nascer do dia, cinco e meia, seis horas da manhã, para logo depois praticar o Tai-Chi-Chuan, na busca do equilíbrio físico e emocional.

2. Caminhar diariamente durante quarenta minutos — ritual que cumpri enquanto pude.

3. Alimentar-se de forma saudável – com parcimônia, mas sem perder o prazer das refeições.

4. Visitar os médicos a qualquer desarmonia de ordem física. E, importante: seguidas as orientações médicas, não pensar mais nisso.

5. Aproveitar ao máximo os momentos de convivência com aqueles que gostam de estar perto de nós – aproveito, o quanto posso, a companhia dos familiares.

6. Encontrar os amigos – enquanto pude, às segundas e quartas-feiras, vivi momentos especiais, sinceramente os momentos de maior alegria da semana: o reencontro com as amigas do NEETI.

7. Praticar a terapia das mãos e da mente ocupada. (Li sempre e, enquanto pude, mantive também minhas mãos ocupadas: o crochê, o tricô, a tapeçaria, a pintura. Quando a deficiência da visão não permitiu mais essas atividades, aprendi a ler pelo sistema Braille. Quando o tremor das mãos não mais permitiu a leitura pelo Braille, passei a ouvir gravações ou a ter a dádiva da leitura das minhas queridas acompanhantes. Esquecida das limitações, procurei sempre apurar o gosto literário, relendo os escritores clássicos e conhecendo os modernos.)


Aproprio-me da questão e ensaio a seguinte resposta: se me fosse permitido, gostaria de terminar os meus dias no exercício da trilogia cristã – fé, esperança e caridade –, com a bênção de Deus, o amor de meus filhos, netos e bisnetos, o carinho da amizade de todas as pessoas que moram em meu coração, a paz do dever cumprido e a certeza de que minha vida não tenha sido inútil.



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