VIVOS E MORTOS DE UBERABA CENTENÁRIA – SANTINO GOMES DE MATOS
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 15 de out. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 17 de out. de 2024
Pregões de uma grande vida –
Um pregão de abóboras na manhã encorujada de frio.
– Abóbora! Vai abóbora!
O pequeno vendedor às vezes relenta o passo, para, a "quentar sol" , e descansa a sua carga meio desconsolado com a ausência da freguesia ainda adormecida. Nem mesmo d. Floripes, sempre tão madrugadeira, lhe atendera ao oferecimento gritado no mais alto da voz límpida, entoadinha de fazer gosto.
E mamãe em casa, à espera dos tostões das verduras, com que inteirar o dinheiro das compras, no mercado!
Um sentimento de desgosto magoa o olhos do garoto, com a lembrança triste do ambiente do lar, tão castigado de pobreza. Tudo eram dificuldades, tudo eram sacrifícios da coitada da mãezinha, na máquina de costura ou no ferro de engomar, na lida das panelas e também nos trabalhos da horta, para a vendagem diária de abóboras e chuchus. E ainda não lhe pingara um só tostão no bolso raso das calças de riscado!
Bem verdade que a manhã continuava enfarruscada, com um sol de preguiça e de sono encapuzado no céu, que apenas por instantes varava os panos da neblina, e logo se recolhia, numa síncope, deixando no espaço a claridade baça e indecisa de um arrependimento da luz.
O pequeno vendedor de abóboras toma-se agora de um poder estranho de embevecimento. A gamelinha posta ao chão, esquecido dos pés descalços e das mãos meio arroxeadas de frio, viaja por outros mundos, por outros sóis, ricos de luz e de calor, que, entretanto, nascem de si mesmo, como uma força do coração, como um prolongamento esquisitamente poderoso da sua alma infantil, que um toque mágico de poesia arrebata em visões altas e mirabolantes.
O êxtase, porém, é obra de momentos. Investe com a porta fechada de D. Floripes, pensando nos tostõeszinhos que tinha de levar a casa, para a carne e o toucinho do dia.
– Abóbora! Abóbora! Quem quer abóboras!
Foi esse o primeiro pregão de Quintiliano Jardim pelas ruas de Uberaba. Perderam-se entre tantos outros que ecoaram na cidadezinha sertaneja, cujo destino ainda não se podia decifrar nos passos arrastados de uma evolução lenta, morosa, inexpressiva. Teria Uberaba forças para ir além de um desses burgos interioranos, que murcham e se apagam depois de uma aragem ligeira de progresso, igual a Desemboque, igual a tantas outras povoações que mal haviam arregalado os olhos para as promessas da civilização e já passavam a cochilar, numa madorna longa, como um estado de coma, que precede a decadência definitiva, irremediável.
Uberaba lutava pela sua sorte, e o futuro revelaria seu destino.
E Quintiliano Jardim?
O pequeno vendedor de abóboras, ia tomando pé na vida, depois das primeiras letras na escola de Mestre Raimundo. Guiava-o nos estudos uma inteligência vivíssima, projetando-o entre os colegas do curso primário, e mais tarde da Escola Normal, onde recebeu prêmio de distinção das mãos do Prof. Artiaga na cadeira de Português. Devia destinar-se a conhecimentos superiores numa faculdade da Capital, seguindo Direito, Medicina ou Engenharia.
Mas o poeta daqueles olhos perdidos na manhã nevoenta em que apregoava abóboras pelas ruas de Uberaba, quando mal ia aos nove anos da sua idade, agora se anunciava, em produções líricas de genuína inspiração. Só que a vida continuava a apresentar-lhe os formidandos problemas da luta pela subsistência.
Formulava ao sonhador, com pior catadura que a da esfinge de Tobias, o mesmo desafio cruel: ou me decifras ou te devoro. Não eram, certamente, soluções de ordem metafísica que o jovem adolescente tinha de encontrar. Mas de ordem prática, miseravelmente prosaicas, nas preocupações miúdas e rasteiras de como vestir e calçar, sem desdouro das suas pretensões de elegância.
Um poeta, com muito fogo no coração, muita ânsia de amor nos olhos de visões femininas, e todo desejos de acompanhar nas ruas provincianas a mesma linha de trajar dos leões da moda e da conquista. Quintiliano Jardim erguia-se acima de si mesmo, nas posses limitadíssimas, para a nota externa de sua pessoa, em correspondência com uma riqueza interior incomparável.
Submeteu-se a concurso para professor municipal e o êxito foi completo. Dali por diante, a semana inteira tinha de meter a carta de a-b-c e as quatro operações em cabeças duras, na escola noturna, frequentada por maiores de vinte anos. Aos domingos, porém, à porta do Politeama, enchendo os olhos e o coração do cortejo de beldades, esquecia-se do sacrifícios de mestre-escola. Pagava-se de tudo em se sentir também centro de muitas atenções femininas, bem apessoado e bem posto, no terno impecável de casimira inglesa, de bengala a girar entre os dedos, e uma petulância de moço bonito, quase arrogante, na cabeça levantada.
Sabiam-no poeta, autor de quadras que rivalizavam com as de Belmiro Braga, se não fossem de mais delicado lirismo, como um dia lhe disse o vate juiz-de-forano, amigo de Quintiliano Jardim.
Já nesse tempo frequentava as melhores rodas literárias de Uberaba, Atanáslo Saltão, Militino Pinto, José Maria dos Reis, para apenas citarmos alguns nomes da plêiade de valores das belas letras e do jornalismo, que agora tão alto projetavam os foros de cultura da terra de Major Eustáquio.
Era colaborador assíduo da "Revista de Uberaba". A vocação das letras, como escritor, poeta e jornalista, marcava-o fortemente, e de maneira definitiva e fatal. E o que tinha de ser aconteceu.
O mestre-escola, o guarda-livros, o caixeiro-viajante, nada mais foram do que desvios do destino, nas contingências da luta pela vida, que Quintiliano Jardim teve de arrostar e vencer, com a vontade indomável de um lugar ao sol.
O jornalista Francisco Jardim, que substituíra a Garcia Adjuto, na direção do semanário "Lavoura e Comércio", também se ia de mudança para o Rio de Janeiro. O oferecimento da direção da folha foi menos um presente da amizade fraterna do que um desafio à capacidade do jovem Quintilianinho. E o conselho: "Que não lhe vá morrer às mãos o jornal que a lavoura e o comércio tinham ajudado a fundar em Uberaba, numa atitude rasgada de protesto contra o aumento de impostos do governo de Silviano Brandão.
Quintiliano Jardim pesou e repesou a carga da imensa responsabilidade. Conhecia, de perto, o drama da imprensa no interior. Uma espécie de loucura do ideal, numa corrida sem fim de obstáculos.
Sem nenhum lastro econômico que lhe garantisse a continuidade, "Lavoura e Comércio", então de formato pequeno e tiragem reduzida, naquele tempo não passava de uma aventura perigosa por mares de tormenta. A sua direção, numa época em que as atitudes de independência de um jornal se travavam a chicote ou a bala, da parte de prepotências agastadas ou ofendidas, constituía, certamente, temeridade. Os exemplos de derrota e de fracasso não deixavam muita ilusão.
Fosse como fosse, Quintiliano Jardim resolver seguir de olhos fechados os apelos de sua vocação. Tomou nos ombros a responsabilidade da pequenina folha, e logo a transformou na razão de ser da sua própria vida.
A cada revés, na batalha desenganada a que se entregou, respondia com renovados impulsos de coragem e de audácia.
Um dia, atearam-lhe fogo às oficinas do jornal. Era a resposta feroz dos adversários batidos numa das memoráveis campanhas política de "Lavoura e Comércio". E Quintiliano, no esforço desesperado de debelar o incêndio, por entre as labaredas que se erguiam, viu que não era só o empenho da inteligência, do talento e das convicções cívicas que se exigia no seu apostolado jornalístico, mas ainda o arrojo pessoal de enfrentar a própria morte, na preservação de seu mundo de fé e de ideal.
Foi com essa têmpera, foi com essa decisão quase sobre-humana, que Quintiliano ergueu o empreendimento do maior e mais conceituado jornal do interior do país.
Deu-lhe o melhor da sua existência, fê-lo resplandecer no prestígio de verdadeiro intérprete das aspirações do povo, marcou-o do cunho vivo de paladino das boas causas, tirando de si mesmo, da sua personalidade vigorosa, do seu talento de escol, da sua cultura polimofa, as linhas mestras do diário que tanto honra as tradições de espiritualidade desta terra.
Quintiliano Jardim é "Lavoura e Comércio. "Lavoura e Comércio" é Quintiliano Jardim.
Coroado príncipe dos jornalistas do Triângulo Mineiro, num preito tanto mais justo quanto unânime foi o testemunho de exaltação dos seus colegas. Quintiliano viu passar o seu jubileu de tarimbeiro da pena, quando "Lavoura de Comércio" comemorou cinquenta anos de existência, em 1949.
O lidador, entretanto, continua a postos, na sua mesa de trabalhos. tendo madrugado num exemplo de vida laboriosa, a vender abóboras pelas ruas de Uberaba, não sente o peso dos anos, para continuar como um espelho de operosidade em face das novas gerações.
E o pregão de hoje, nas ruas da Uberaba Centenária, que Quintiliano Jardim ajudou a erguer nos aspectos de grandiosidade da Capital do Triângulo, escudando-a com a força da sua pena, há mais de oito lustros, nas caminhadas de desenvolvimento material e cultural; interpretando-a nos anseios de altura, para que não caia por terra uma só das nossas reivindicações de progresso; afeiçoando-a na opinião exata do justo, do verdadeiro e do belo, dando-lhe o sentido de equilíbrio, no respeito à autoridade constituída, mas sem quebra da brava independência de julgamento e de ação de nossa gente; – o pregão de hoje, pelas ruas da Uberaba Centenária, no grito vespertino de "Lavoura e Comércio", em que se misturam as vozes de dezenas de pequenos vendedores do magnífico jornal da Rua Vigário Silva, projeta em grande, na admiração e no respeito do povo, a figura de Quintiliano Jardim, vinda do fundo de velhos tempos de dificuldades, subindo no esforço do seu talento e na bravura de sua coragem, até o panteão das expressões primeiras de nossa história. Quintilinaninho de ontem, Quintiliano de hoje, Quintiliano de sempre, na imortalidade gloriosa do maior jornalista que o interior do Brasil jamais conheceu.
Crônica publicada em 9 de fevereiro de 1956

