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Yone – A cronista

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 6 de jun. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 16 de mar.

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Yone gostava imensamente do magistério.  Não obstante, em certo momento, decidiu abandonar a profissão. Nos dias atuais é difícil entender. Mas, à época, era comum que os casais assim decidissem. Embora as famílias não tivessem dificuldade de encontrar, para trabalhar em suas residências, leais auxiliares domésticas, as esposas, mesmo com esse assessoramento,  muitas vezes preferiam dedicar-se integralmente ao lar. Assim fez Yone, perdendo o magistério uma excelente professora.

 

Yone sentia-se realizada como esposa, como mãe, como dona de casa. Mas os meninos cresciam, já iam adiantados na escola, por isso Yone decidiu intensificar sua participação nas ações sociais vicentinas ou da igreja. Nessas reuniões, as amigas comentavam sobre a necessidade de haver alguém que, nos jornais da cidade, escrevesse, com um olhar feminino, sobre a vida cotidiana.


Essa demanda despertou em Yone uma de suas vocações: escrever.  


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Certo dia, num impulso, com o pseudônimo

de Diana de Lys, redigiu uma crônica e encaminhou-a ao jornal.  Lá, ninguém imaginava quem seria a autora.  Mas gostaram do texto e o publicaram.


Houve repercussão imediata. Vários leitores escreveram aplaudindo, entusiasmados.

O jornal publicou essas “cartas dos leitores” com um recado à escritora de que o espaço estava aberto para ela. Yone escreveu e enviou um novo texto.

 

Lendo a segunda crônica, Santino disse a Yone:

– Essa Diana de Lys, pelo estilo, pelos ideais tão firmes, mas tão suavemente defendidos, só pode ser uma pessoa: você!



O segredo fora descoberto e, em consenso, anunciado ao dono do jornal. Quintiliano Jardim

ficou felicíssimo com a descoberta, mas pediu que as crônicas continuassem assinadas pela misteriosa Diana de Lys. E assim, por muito tempo, Yone contribuiu para a imprensa uberabense.

Mas, em 1975, Diana de Lys desapareceria para sempre.

 

A partir daquele ano, divisor de águas para a vida de Yone, ela não escreveu mais, até que, aos 80 anos de idade, decidiu residir em Belo Horizonte. Tantos anos depois, chegando à Capital, integrada à Universidade da Terceira Idade da Fumec, criou, juntamente com as colegas, um jornal (Degrau).  Desde então, por 10 anos, Yone voltou a escrever crônicas, sempre com seu estilo peculiar, tratando dos assuntos mais palpitantes do momento político, econômico e social, da influência dos meios de comunicação na vida familiar, das mudanças no setor educacional e de outros aspectos relevantes da vida cotidiana.  Algumas dessas crônicas sensacionais, reproduzidas em jornais de BH, que parecem escritas para os dias atuais, estão digitalizadas e disponibilizadas neste site.


Quanto às crônicas de Diana de Lys, serão posteriormente aqui colocadas, principalmente pelo seu interesse histórico, pois mostram, a partir do olhar delicado e percuciente da cronista, a essência da vida e da alma uberabense daquela época.


Vou transcrever aqui uma das crônicas de Yone, publicada em Belo Horizonte, escrita em 2005. Perceberão como parece algo que poderia ser escrito para os dias de hoje.


EXISTE CONSCIÊNCIA ELÁSTICA?

Crônica de Yone Passaglia Gomes de Matos, outubro de 2005.


A consciência do cidadão comum oscila, hoje, entre a certeza da impossibilidade de uma ação individual e a ânsia por mais solidariedade.


Costumo fazer, de vez em quando, uma incursão pelo mundo das recordações. Não por saudosismo – do qual não padeço –, mas para tirar lições práticas de experiências vividas ou sofridas. Afinal, em que se resume a existência humana senão numa contínua e ininterrupta aprendizagem?


Na emaranhada cadeia de lembranças, encontramos revelações que nos surpreendem. Foi assim que recordei meu primeiro contato com as contraditórias implicações do tema "liberdade", muito antes de ter ouvido tal palavra.


Minha mãe costumava servir-nos água e refresco em copos de cristal, recomendando-nos cuidado para que não os quebrássemos. Não sei se foram as seguidas recomendações ou a atenção com que nos observava, o fato é que um estranho desejo apoderou-se de meu cérebro: quebrar com os dentes um daqueles copos.


Enquanto esperava um momento propício, revelei a minha irmã o que pretendia fazer. Com a grande sabedoria dos seus nove anos, ela sentenciou: Você vai cortar a língua e a boca. Vai sangrar até ficar sem sangue. Depois vai apanhar "de chinelo" e só vai beber água na caneca.


Diante de perspectivas tão adversas, desisti de meu intento, mas ganhei minha primeira frustração, nos meu quatro anos de idade. Percebi que não era livre para fazer o que queria.


Mais tarde aprendi a cantar hinos patrióticos. E um deles dizia: "Liberdade! Liberdade! Abra as asas sobre nós!"


A imagem de um pássaro gigantesco descendo do céu à terra povoou minha imaginação infantil. Suas asas deviam ser feitas do algodão das nuvens, tão leves e claras. Mas sua voz deveria ser mais forte que um trovão, pois cantávamos: "Das lutas, na tempestade, dá que ouçamos tua voz!"


Logo mais aprendi que a vida é o melhor presente de Deus, que também nos deu o "livre arbítrio" para que pudéssemos escolher o nosso caminho.


Aprendi, ainda, que a liberdade é o maior bem da vida, mas que sua extensão é limitada: a sua liberdade vai até onde começa a do outro. Pareceu-me bem confuso... Que outro? Seu pai, sua mãe, seus vizinhos, sua casa, sua cidade, seu Estado, seu País???


Para descomplicar, criaram-se as leis, que determinam direitos e deveres do cidadão. Tudo bem. Leis são claras e objetivas.


Vejamos como se comportam na vida prática. Citemos apenas dois desses direitos do chamado "homem livre":


1. O direito de votar – essa inestimável conquista da democracia de escolher seus mandatários – tornou-se por determinação da mais alta hierarquia, um "direito obrigatório".


2. O direito básico de ir e vir livremente. Ai de quem ousar exercê-lo. Todos sabemos os riscos a que nos expomos quando somos obrigados a ir a pé para a escola, para o trabalho, às compras, ou quando – de carro –, baixamos os vidros das portas. Poucos são os felizardos que não sofreram ainda algum tipo de agressão ou de assalto a mão armada.


Neste segundo exemplo, a coação da liberdade parte da marginalidade. E todos nós nos sujeitamos a viver trancados a sete chaves, aterrorizados pelos perigos das ruas. Somos encarcerados "voluntários". Até quando teremos de esperar para voltar a acreditar que o homem é um ser livre e não um boneco virtual?


Como reverter a situação de insegurança em que vivemos? Haverá solução para os problemas como impunidade, drogas, desemprego, fome, que tanto afligem a sociedade? Claro que há. Mas seremos nós, meros e indefesos cidadãos, os que devem individualmente solucioná-los?


Certamente que não! Para isso elegemos os governantes. Para isso lhes outorgamos nosso voto e nossa confiança. Para isso pagamos impostos e mais impostos, que lhes possibilitam os meios materiais de ação. Para isso lhes depositamos nas mãos o poder, a credibilidade e a esperança.


Diz a sabedoria popular que a esperança é o derradeiro bem que se perde. A nossa agoniza. E nos perguntamos:

– Onde está escondido aquele pássaro destemido pelo qual tanto chamávamos: "Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós!"?

– No nosso foro íntimo, dirão alguns. E ali ninguém poderá atingi-lo.


Ledo engano! Pois é precisamente no nosso foro íntimo que está o mais implacável dos censores: a nossa consciência, que pesa cada um de nossos atos na balança da justiça.


A consciência do cidadão comum oscila, hoje, entre a certeza da impossibilidade de uma ação individual e a ânsia por mais solidariedade – essência do amor ao próximo, capaz de frutificar em paz.


Nesse momento, sorrateiramente, certa ideia maquiavélica vem estilar seu veneno de dúvida: Há homens que possuem uma "consciência elástica".


Titubeio por um instante, mas logo me ocorre que, se assim é, se tais homens estão entre os que detêm o poder, temos que chamá-los à razão. Urge um grito coletivo de chamado à consciência, capaz de acordar naqueles que elegemos como líderes a capacidade de agir pelo bem, como de restabelecer a concórdia e a decência, ressuscitando a compaixão e a justiça, que se petrificaram em seus corações e em suas mentes. Mais do que um direito, é nosso dever pedir-lhes as contas de seus atos e trazê-los para a realidade antes que o caos se estabeleça por completo e a liberdade venha a se transformar num conto de fadas.






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