Yone – A convivência familiar e a vida social
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 5 de jun. de 2024
- 14 min de leitura
Atualizado: 15 de abr.
Os almoços de domingo
A família se reunia aos domingos na casa da “nona”, na Henrique Dias. Tia Adelina morava com ela. Nós cinco estávamos sempre lá, como também tio Raymundo e Ana. Mas chegavam outros parentes. Tio Celeste vinha habitualmente de Araguari. E muitos de seus filhos, genros, noras e netos, embora residentes em outras cidades, apareciam sempre. Não era raro também que surgisse algum dos primos de minha mãe, filhos de minha tia-avó Maria e meu tio-avô Dante, cujas famílias, àquela época, já tinham, em sua maior parte, se transferido para o Rio de Janeiro.
Frequentemente alguns amigos também se juntavam à família. Tudo era muito espontâneo, sem formalidades maiores. A mesa era sempre bem posta, com bela porcelana e lindos copos de cristal. Mas tudo ficava preparado para acrescentar lugares.
Reunião típica de família italiana! Meu pai, genro querido como se filho fosse, líder natural da família, presidia a mesa. Cabia-lhe sempre abrir o vinho.
As crianças, tínhamos uma mesa à parte, lá na cozinha. Nós nos sentíamos muito importantes, porque minha mãe, muito habilidosa com a meninada, preparava para nós algo que ela chamava de “sangria”. Em uma jarra bonita, colocava algumas frutas picadas, gelo e bastante água. Depois, pingava ali algumas gotas de vinho. Para nós, esse refresco gerava a sensação de estarmos já adentrando o mundo dos adultos.
O único desconforto que eu sentia naqueles almoços era quando havia frangos assados à mesa. Nessas ocasiões, quando terminávamos a refeição e tínhamos licença para deixar a mesa, eu saía correndo para o quintal, a identificar quem teriam sido os “sacrificados” do dia.
O quintal da “nona”
A casa era pequena, internamente, mas muito aconchegante. Havia um permanente aroma de rosas, pois os cômodos estavam sempre enfeitados com muitas dessas flores. A casa possuía um pequeno jardim à frente, que a rodeava toda até o quintal, com canteiros repletos de roseiras. Havia cravos, também. Mas os cravos não “brigavam” com as rosas, que eram escandalosamente mais vistosas. Havia ainda no jardim uma raridade: uma grande caneleira.
O quintal, em contraposição ao pequeno jardim, era imenso, atravessava o enorme quarteirão, terminando na outra rua.
Da cozinha interna da casa, uma escada de quinze degraus levava à parte cimentada do quintal. De um lado, ficava a grande lavanderia com tanques e varais. Do outro lado, havia uma “casinha de fundo”, constituída por um amplo e arejado “quarto de costura”, um banheiro e uma cozinha avarandada – a “segunda cozinha” – com fogão a lenha, onde se defumava toucinho e se estendiam para secar as massas feitas em casa.
Logo abaixo, havia um pequeno gramado, gostoso de caminhar, com canteiros compridos, que compunham uma horta com boa variedade de plantas: couve, taioba, rabanetes, tomates, alfaces, pimentões, quiabo, jiló, temperos verdes em profusão, ervas diversas para chás. Os canteiros eram muito bonitos porque eram cercados por crisântemos. Era uma estratégia de minha avó para evitar formigas ou pragas nas plantas, sem necessidade de qualquer preventivo químico, uma vez que aqueles “cravos amarelos” são repelentes naturais de insetos.
Ao longo do muro – limítrofe com a casa vizinha, onde morava tio Raymundo – havia um caramanchão, com chuchus e maracujás, além de uma trepadeira florida, que ensombrava um espaço com bancos.
A partir da área cimentada, o terreno abria-se, em descida, num pequeno pomar, paraíso da natureza dentro da cidade. Com efeito, era uma “micro chácara”: dois limoeiros (limão “galego” e limão “china”), uma laranjeira, goiabeiras, mamoeiros, uma jabuticabeira e uma mangueira (de manga "sabina"). E, finalmente, lá ao fundo, já no limite da outra rua, havia algumas bananeiras e o enorme e comprido galinheiro.
Como o terreno tinha uma descida natural, havia um sistema de água que se fazia escorrer desde a área cimentada, molhando os pés das árvores e descendo até o galinheiro, que acabava lavado por aquela água. Ali, havia uma espécie de “sistema de esgoto”. Bem civilizado! Por isso não havia nenhum cheiro desagradável. Um galinheiro limpo, que abrigava também perus.
Certa vez, lembro-me de que tio Raymundo nos chamou (às crianças) para presenciar uma experiência. Pegou um dos perus, colocou-o na parte cimentada do quintal e desenhou, em volta dele, um círculo com as cinzas do fogão de lenha. O bichinho, desesperado, “glu-glu-glu”, rodava, e rodava, e rodava, e rodava, mas não tinha coragem de ultrapassar o círculo. Eu nunca me esqueci daquela cena. Hoje, penso quantas vezes na vida nos comportamos como esses bichinhos: criamos cercas imaginárias à nossa volta, aparentemente intransponíveis, sem nos dar conta de que um pequeno passo nos garantiria a liberdade.
Chegados à casa da “nona”, ela logo mandava as crianças para o jardim e o quintal, nos aproximando da natureza: aguar o jardim ou a horta, colher hortaliças e temperos, retirar ervas daninhas dos canteiros, cortas flores para enfeitar a casa, recolher ovos, cuidar dos bichinhos domésticos. Minha atividade predileta era dar milho às galinhas, especialmente quando havia pintinhos. Que encanto aquele bando de amarelinhos passeando com a orgulhosa "protetora". Colocávamos nome em todas as aves. Comandava o local um galinho garnisé, pequenino, mas tão bravo que até os perus tinham medo dele.
Entre os bichinhos domésticos, o de que eu gostava mais era de um jabuti, pequeno ainda, chamado jabolão, que vivia muito regalado na parte alta do quintal, onde havia para ele pedras e suculentas para sombrear. Quando eu chegava, logo ia tratar dele, levando-lhe pedacinhos de mamão. Podia ficar horas ali vendo aquele lento bichinho se decidindo a alguns passos, parando, como a meditar, “tira o pescoço, põe o pescoço para dentro”.
Colocávamos também algumas frutas frescas cortadas nas árvores, em pequenas travessas de madeira, e potinhos de água, para atrair passarinhos. Não havia nenhum pássaro engaiolado, mas o quintal estava sempre com vários deles pelas árvores, com seus chilreados. Na verdade, os bem-te-vis reinavam ali. Outros pássaros iam e vinham, os bem-te-vis permaneciam. Talvez por isso, até hoje, quando ouço um bem-te-vi, minha alma evoca aquele tempo tão feliz.
Esse tipo de quintal, hoje tão estranho a crianças que crescem em apartamentos, era comum naquela época, nas cidades do interior. Quase todas as casas tinham quintais, algumas vezes não tão grandes, mas o suficiente para uma vida urbana mais próxima da natureza.
Reunião à mesa
Cozinhar e fazer a refeição em família, é algo que está na alma dos italianos. Compartilhar o prazer de cozinhar. Depois, reunir-se à mesa com tudo o que foi preparado com tanto carinho. O cheiro e o sabor da cozinha italiana, a alegria, a música. Quanta música: aos domingos na casa da "nona", a vitrola estava sempre a tocar.
Mas o domingo não se resumia ao almoço. A reunião ia tarde adentro. Meus pais habitualmente tinham outros compromissos. Mas muitas vezes eu ficava por lá. A turma feminina se encarregava de organizar a cozinha e depois reunia-se aos demais. Às vezes, tia Adelina tocava acordeon. Perto das 18 horas chegavam várias senhoras, amigas de minha avó, para o café da tarde. Eram bolos, broas, bolachinhas, bolinhos de chuva, pastéis, palha italiana, pudim de queijo... Cada domingo uma novidade!
Depois do lanche, elas jogavam víspora. O jogo não era "a dinheiro" ou "a prêmios". Nada disso. Jogavam apenas pela competição e pela alegria do encontro. O jogo de víspora era um jogo era um jogo com cartões numerados, semelhante ao bingo. O objetivo era completar linhas, colunas ou diagonais na cartela, marcando os números sorteados. Cada jogadora podia ter até 4 cartelas numeradas de 1 a 75. Em cada rodada, um número era sorteado e a jogadora marcava o número com pequenas sementinhas, distribuídas junto com as cartelas. Completada a linha, a jogadora gritava a vitória. Não se permitiam participar do jogo, mas me deixavam "cantar as pedras", ou seja, sortear e anunciar a pedra numerada, que ficava embaralhada com. as demais dentro de um saquinho de veludo. Eu me sentia importantíssima.
Minhas lembranças da Henrique Dias vão apenas até os meus 10 anos de idade, quando minha avó fez sua passagem deste plano. Mas, para mim, foi tempo suficiente para inscrever-se, em minha alma, a doce semente daquela amorosidade familiar de raiz italiana, a se desdobrar gerações afora.
A tradição mantida
Depois do passamento de minha avó, meu pai fez questão de não deixar a família se dispersar. Os familiares de papai moravam muito longe, a maior parte no nordeste, talvez um fator a mais a levá-lo a adotar tão estreitamente a família da amada esposa como sua, isso, obviamente, além da afinidade natural que tinha com os cunhados, sobrinhos e demais
familiares de minha mãe que nos frequentavam.
Assim, os almoços de domingo passaram a se centralizar lá na Bernardo Guimarães. Embora não tivéssemos mais a exuberância do "pomar da nona", tínhamos lá nossa hortinha (embora toda plantada em vasos, de forma peculiar mas eficiente), e a casa era espaçosa o suficiente para permitir agradável e confortável almoço dominical. E meu pai, com sua verve, seu bom humor e criatividade, capitaneava aqueles encontros de tal forma que os demais integrantes da família Poppi-Passaglia e muitos amigos gostavam de ali estar. Os cheiros e sabores italianos, a música, todo esse ambiente de alegria e confraternização preservavam a tradição.
Meu pai, algumas vezes, inovava as reuniões também com alguma pitada nordestina. Em épocas de caju, por exemplo, compravam-se lá em casa quilos da fruta. Minha mãe orquestrava, com maestria, a preparação de compotas de caju que, depois de prontas, iam para vidros esterilizados e fechados com parafina, o que permitia que os doces se preservassem por mais de um ano. Mas as "caretas" dos cajus eram guardadas. Então, algumas vezes, aos domingos, meu pai ia para a área cimentada que havia próxima à cozinha. Ele surgia com um "equipamento rústico" que havia criado.
Embora houvesse ali uma pequena churrasqueira, meu pai explicava que não poderia usá-la para a queima artesanal das castanhas. É que, ao queimar, as "caretas" de caju soltam um óleo, que é combustível, o que tornaria o processo perigoso numa churrasqueira. O tal "equipamento" nada mais era do que uma lata bem grande e muito alta, tendo uma abertura na parte de baixo. Ali era colocado o carvão e acendido o fogo. Na metade daquela lata, era colocada uma grade, sobre a qual iam as "caretas de caju". Daí a alguns minutos, o fogo ficava muito alto, por causa do óleo natural desprendido, e logo elas começavam a "pipocar". Totalmente tostadas, eram retiradas dali, com cuidado, e quebradas uma a uma. De cada qual saía uma castanha perfeita, deliciosa. Talvez por se tratar desse ritual "caipira", talvez por serem torradas e imediatamente consumidas, o fato é que todos apreciavam imensamente o sabor daquela lembrança nordestina.
A igreja de São Domingos, as ações sociais
Minha avó Izabel, fervorosa católica praticante, ia à primeira missa da manhã, todos os dias. Ela também me ensinava muitas orações lindas e diferentes, com aquele seu sotaque único (ela nunca aprendeu a dizer o "ão" e como me enternecia ouvi-la dizer "coraçon"). Uma dessas orações, que ela teria aprendido com sua avó, e que rezava todas as noites antes de dormir, assim dizia:
"Com Deus me deito, com Deus me levanto, na graça de Deus e do Divino Espírito Santo. Nossa Senhora, me cubra com vosso Divino manto. Se bem coberta eu for, não terei medo, nem pavor, nem daquilo que mal for. São Bento disse à missa: Nosso Senhor benzeu o altar. Assim ele benze esta cama, na qual eu venho me deitar. Sete velas me alumiam, sete anjos me acompanham, três aos pés, quatro à cabeceira. E Jesus Cristo na dianteira. Se eu dormir,
Jesus me acordará. Se eu morrer, Jesus me iluminará, com as três tochas da Santíssima Trindade."
Tempos depois descobri que a oração trazia a mensagem presente em dois salmos:
Do Salmo 35, que diz: "Eu me deito, durmo e torno a acordar, porque o Senhor me sustém. Não temo os milhares que me cercam de todos os lados".
Do Salmo 48, que diz: "Em paz me deito e logo pego no sono, porque, ó Senhor, só tu me fazes repousar seguro".
Hoje, com conhecimentos de física quântica e a busca da expansão da consciência, quando cogitamos de viagens astrais, de desligamento parcial do corpo físico quando dormindo, da certeza de que tudo é energia, estabelecer um decreto de conexão com o Alto antes de dormir talvez faça ainda mais sentido, mesmo que isso seja feito, obviamente, nestes tempos atuais, em outras formas de orar.
Isso me faz lembrar de uma oração recomendada por de Chico Xavier. Nas palavras dele: "Antes de dormir, diga estas três coisas ao Espírito Santo, e veja a mágica acontecer: 1. Espírito Santo, me protege. A palavra diz que Deus cuida até do nosso sono. Então, enquanto o mundo dorme, Ele vela por você. 2. Espírito Santo, me ensina. Assim, quando o sol nascer, você vai perceber, decisões que pareciam nebulosas vão clarear. O Espírito já terá soprado respostas no seu coração, como um sussurro no vento, afastando enganos antes mesmo que você tropece neles. 3. Espírito Santo me enche. Já reparou como um copo cheio não deixa espaço para mais nada? Pois é. Quando estamos transbordando do Espírito Santo não sobra brecha para as fraquezas nos puxarem para baixo."
É importante reconhecer que, para os imigrantes italianos, o catolicismo, na sua forma mais tradicional, foi a pedra angular da sua resistência às dificuldades, mantendo sua fibra diante de todos os desafios vividos e superados.
Meu pai e minha mãe eram católicos. Não faltávamos à missa de domingo e participávamos das atividades do ano eclesiástico. Mas meus pais distinguiam a essência da fé – os ensinamentos de Cristo – de questões oriundas da autoridade humana da igreja sobre questões do mundo, como havia à época, como a proibição de ler certos livros filosóficos ou teológicos. Ou seja, professavam a fé inabalável em Deus, nos ensinamentos de Jesus, com conhecimento amplo, respeitoso e profundo da bíblia, e preferiam os ritos da igreja mais tradicional, mas entendiam as limitações de qualquer organização religiosa quando se coloca humanamente autoritária. E, com efeito, não há como não reconhecer que a igreja católica nem sempre esteve imune a complexas e estranhas questões humanas, que a envolveram no decorrer dos séculos.
Diante disso, o fato de serem católicos não os impedia de lerem e possuírem na bibliioteca obras dos diversos pensadores, sobre todas as religiões, sobre teosofiia, budismo, hinduísmo. Os livros de Allan Kardec e de Chico Xavier, por exemplo, vedados pela autoridade episcopal da época, lá estavam. E nunca se discutiu religião em casa. Minha tia Adelina, por exemplo, tornou-se kardecista, depois do falecimento de minha avó, mas jamais recebeu qualquer ressalva de meus pais quanto a isso.
Ressalte-se ainda a importante atuação de meu pai, em fraterna amizade e prestando colaboração, junto às irmãs dominicanas, aos irmãos maristas e aos integrantes da igreja
católica que exerciam o magistério ou estavam no planejamento da elevada missão da
educação da juventude, a partir dos princípios cristãos.
A família toda integrava-se ainda de forma assídua às atividades paroquiais da Igreja de São Domingos. Meu pai e minha mãe eram colaboradores constantes das ações sociais promovidas pelos dominicanos, como também daquelas ações articuladas pelos vicentinos (Sociedade São Vicente de Paulo – SSVP) e pelo Rotary Club.
Uma atuação muito forte da família foi junto ao Instituto dos Cegos. Meu pai, minha mãe e minha avó Izabel incentivaram e apoiaram o Instituto dos Cegos desde sua fundação. Anos depois, inclusive, além da assistência financeira, minha mãe tornou-se ali voluntária, tendo aprendido o braille para tal função.
Ao final deste post, anexo a cópia de um texto publicado pelo Instituto dos Cegos em jornal de Uberaba (vou ler posteriormente), que mostra o reconhecimento da instituição a toda a família por esta dedicação. A publicação foi feita quando minha avó Izabel Poppi Passaglia recebeu homenagem como "a mãe do ano". Eles encerram o texto com um belo poema de Yone, dedicada aos amigos cegos.
Aqueles que tiverem a curiosidade de ler ou ouvir o citado texto, sob o título de "justa homenagem", verão ali uma referência também à minha avó paterna, Maria Gondim Gomes de Matos (vovó Marocas – como era carinhosamente chamada por nós).
Vovó Marocas, muito independente mas muito amorosa, morava por determinado tempo com cada um de seus filhos, os quais haviam construído suas vidas em regiões diversas do país. Meu pai e meus tios disputavam a oportunidade, pois a presença dela sempre trazia muita alegria a todos. Por isso, intercaladamente, durante certo tempo, vovó Marocas morou em Uberaba.
As minhas duas avós, Maria e Izabel, das quais herdei o meu nome, construíram uma amizade muito sólida. Tinham muitas afinidades: ambas muito católicas, ambas de rígidos princípios, ambas viúvas desde a juventude, guardando eterna saudade de seus respectivos e amados maridos, ambas tendo perdido vários filhos, inclusive quando crianças, ambas apegadas à família, ambas afetuosas e caridosas. Assim, quando vovó Marocas estava em Uberaba, também se unia à vovó Izabel e à minha mãe, Yone, nas suas rotinas, inclusive nas de ações sociais.
A vida social
Meus pais, Santino e Yone, participavam, sempre que lhes era possível, dos eventos culturais da cidade. Apreciavam todas as artes: música, teatro, cinema. No entanto, não eram de frequentar
grandes eventos sociais. Em contrapartida,
gostavam de organizar reuniões tipo petit comité: pequenos jantares na Bernardo Guimarães para amigos próximos. E também atendiam a convites desses, no mesmo estilo.
Quando criança, lembro-me de algumas vezes os
ver sair, para a sessão das quatro do Cine Metrópole, para se reunirem a amigos num jantar no “Galo de Ouro” ou para algum outro evento.
Meu pai, sempre de terno, com uma de suas belas gravatas italianas. Minha mãe, à moda da época, com cabelo estilizado, em salto agulha muito alto, elegante em vestidos de renda ou bordados à mão, como era costume de então.
Despedia-me deles do alpendre:
– A bênção, papai! A bênção, mamãe!
– Deus a abençoe! Comporte-se! Obedeça à sua tia!
Iam sorridentes, deixando indelével para mim aquela imagem de ternura, da intraduzível felicidade que irradiavam, reflexo talvez da sua reluzente paz interior, advinda do cumprimento
da sua missão de vida, sempre em amor e harmonia – coisas aparentemente tão simples,
mas capazes de tornar a existência plena e de uma riqueza incalculável.
JUSTA HOMENAGEM
Texto publicado pelos diretores do Instituto dos Cegos do Brasil Central no jornal Lavoura e Comércio em maio de1966.
D. Izabel Passaglia, que ora recebe de Uberaba tão justas homenagens, jamais será esquecida pelos fundadores e alunos do Instituto dos Cegos do Brasil Central, pois, quando éramos apenas Associação dos Cegos do Triângulo Mineiro, no velho prédio da Rua Padre Zeferino, 141, já ela nos levava o mais franco e decidido apoio, e, muitas vezes, juntamente com a sempre lembrada D. Maria Gondim Gomes de Matos, genitora de nosso grande amigo, professor Santino Gomes de Matos. D. Izabel nos visitava sempre, encorajando-nos com estas expressivas e inesquecíveis palavras: "Coragem e fé em Deus! Lutem sem desvanecimento, porque vencerão; não há no mundo nenhuma força capaz de destruir o sublime anseio dos corações que idealizam viver e morrer pelo bem da humanidade".
Sua inteligente e generosa filha, d. Yone Passaglia Gomes de Matos, a quem consagramos sincera e incondicional amizade, encontrou tempo para aprender conosco, não só pela visão, mas também pelo tato, o maravilhoso sistema "braille".
Sabe ler com os olhos fechados, como quem não vê. Com a intenção de ajudar-nos a enriquecer nossa biblioteca, já transcreveu para o "braille" diversas poesias, um volume de gramática da língua portuguesa e um livro de matemática. Que Deus lhe pague, concedendo aos seus adorados filhos um futuro promissor, digno do exemplo que recebem de seus pais.
Longe de querer ferir a modéstia de nossa despretensiosa e imprescindível colaboradora, d. Yone Passaglia Gomes de Matos, mas com o único e leal intento de homenagear sua mãe, pois como acertadamente nos assevera o rifão: quem meu filho beija, minha boca adoça, publicamos abaixo um dos seus mais belos poemas, que nos dedicou, numa das fases sinuosas de nossa vida.
Inspirada nos sãos princípios de sua esmerada educação cristã, aprendeu a ver, na insana luta da árdua existência dos deficitários visuais, mais espiritualidade.
Aceite, pois, d. Izabel Passaglia, uma imorredoura homenagem de todos quantos trabalham e vivem no Instituto dos Cegos do Brasil Central, através do poema Luz Interior, de Yone Passaglia Gomes de Matos.
Luz Interior
Yone Passaglia Gomes de Matos
Teus olhos estão fechados para o mundo!
Não vês o bem, não vês o mal!
Não vês o sol, não vês o céu, as flores, as estrelas.
Não vês os pântanos, as chagas, as misérias da vida.
Lembras-me um pequenino barco-pescador na imensidão oceânica em noite procelosa.
Mil perigos te espreitam!
As vagas tumultuam, o vento ruge,
Os abismos escancaram as fauces impiedosas.
Mas tu, impávido, prossegues sem desânimo.
De onde vem a força que te anima?
Vem do teu coração!
Vem da luz interior que brilha e aquece
Como um sol de fulgor imperecível.
E caminhas, cumprindo o teu destino,
Tecendo com as antenas de tua sensibilidade
A teia maravilhosa da esperança humana.
Amigo cego, dá-me tua mão e guia-me!
Dá-me a magia da tua luz interior
Para que eu possa transformar em harmonia e bondade
As dissonâncias da dor e da mentira do mundo que me cerca.
Amigo cego, leva-me contigo,
Que eu quero ver a vida iluminada
Com o sol da beleza da tua humanidade.



