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ARACATI – Santino Gomes de Matos

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 11 de jul. de 2022
  • 2 min de leitura

Atualizado: 8 de out. de 2022

O Aracati acabou de trazer as jangadas à praia.

Vem ainda úmido da maresia

e orgulhoso de ter montado nas costas dos tubarões.

Acaricia, ligeiro, a cabeça dos filhos dos pescadores

e lança-lhes areia nos olhos,

numa intimidade atrevida.

Está com pressa.

Não pode mais dançar, em redemoinho,

a sua ronda predileta.

Toma fôlego e se alteia,

com a asa gigante roçando o céu.

Levanta uma nuvem densa de argueiros

que se agitam e pululam, como micróbios,

no corpo pálido e melancólico da tarde.

Vuuuuu.... Vuuuuu.... Vuuuuu....Vuuuuu....Vuuuuu....

O Aracati está com pressa.

Ele tem de chegar ao "Boqueirão de Lavras"

à meia-noite em ponto,

para ali guaiar um lamento longo de almas penadas,

encanado nas gargantas assombradas das cafurnas.

E ainda falta varrer todas as várzeas do sertão.

E balançar as tipoias armadas em forquilhas,

nas latadas dos comboieiros.

E cochichar no ouvido do homem que fuma no terreiro

uma saudade trazida do mar,

antes que perca o cheiro da maré cheia.

Vuuuuu.... Vuuuuu.... Vuuuuu....Vuuuuu....Vuuuuu....

O Aracati desembestou nas várzeas.

Os carnaubais, em fila cerrada,

procuram impedir-lhe a passagem,

oferecem-lhe mil leques para ele agitar.

E o vento, zangado, os embaralha, os torce e os confunde.

Uma carnaubeira moça deu-se toda aos seus braços

para os apertos sádicos e violentos do grande rei do sertão.

Quer ir com ele, junto do seu peito forte,

para o mundo ilimitado das distâncias.

Aprendeu a ser romântica com a graúna de luto,

que assobia, gemendo, o dia todo, à beira do ninho deserto.

Foi o Aracati que lhe arrebatou os ovos da postura.

Ele é assim mesmo. Faz vezes de louco, de epiléptico.

Entra pelas choças humildes e apaga as velas dos oratórios.

Provoca malassombros embaixo das oiticicas,

numa sarabanda de folhas.

– Cruz credo! T'esconjuro pé de pato!

É ele que gira, em redemoinho, bem na cumeeira da casa

Vuuuuu.... Vuuuuu.... Vuuuuu....Vuuuuu....Vuuuuu....

O Aracati está com pressa.

Ainda tem de virar a bandeira da torre da matriz,

na direção do norte,

desenganando de chuva os olhares ansiosos,

que aguardam bons prenúncios, na cidade do Icó.

Tem de visitar todas as residências

que ainda estão abertas para recebê-lo.

Pois é ele que abranda o mormaço da terra abrasada.

Pois é ele que põe um hálito fresco na boca da noite

e regula a temperatura para os sonos suaves,

nas redes de varanda.

Vuuuuu.... Vuuuuu.... Vuuuuu....Vuuuuu....Vuuuuu....

Desculpem por hoje. O Aracati está com pressa.

Atirou um saara de pó sobre a cidade.

Desmanchou as rodas, nas calçadas.

Arrebatou os chapéus dos transeuntes

e fez panejar, como fantasmas irrequietos,

os lençóis brancos expostos ao sereno, para refrescar.

Quase nem teve tempo de derrubar tamarindos

para os meninos sujos da rua da Taboca.

E já galopa, depressa, rumo ao "Boqueirão de Lavras",

com receio de perder a hora das feiticeiras e das almas penadas.


Do livro Procissão de Encontros

©2022 – Todos os direitos reservados. Permitida a divulgação, desde que citada a autoria

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