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FLAGELO – Santino Gomes de Matos

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 11 de out. de 2022
  • 2 min de leitura

Atualizado: 24 de jan. de 2024

O dia todo pela vila andara, com a sua dor em procissão.

Mais parecia o seu filhinho torto, a teratologia

de um boneco que um lápis mau criara para a feira de amostra dos abortos.


Ninguém a viu e a todos se mostrou,

esquálida, desnuda, suplicante,

com um manto de sol ironizante

como a púrpura dos ombros do Senhor.


À noitinha, volvendo ao pouso triste, a custo se arrastava.

Lá, a filha mais velha,

tal um cristão antigo sobre a grelha,

numa cama de vara agonizava.


Meu Deus! Se ao menos a encontrasse morta!

Que havia de fazer... as mãos vazias!

Apenas recebera em cada porta

o cômodo “perdoe” das almas frias.


“Que hei de fazer, Deus meu, que hei de fazer,

se a pobrezinha vive?”

Se ainda sofre e geme, e espera e crê

na fortuna maldita que não tive?


Um bacurau bateu as asas moles

no interior sombrio da cabana.

As frestas resfolgavam como foles.

O vento entrava crespo, de roldana,

e punha um beijo morno nos farrapos

que envolviam a pobre pequenita,

cuja vozinha aflita

tinha acentos da voz dos pobres sapos

atraídos de uns olhos de serpente.


E o gemido cresceu amarguradamente:

“Ó mamãezinha, sim, é Deus quem quer.

mas tenho tanta fome, tanta, tanta!

Pegue, pode levar a minha “santa” para vender.


E apresentava a bonequinha suja

que ainda uma vez beijava,

naqueles olhos duros de coruja,

com que a bruxa a fitava.


“Mamãezinha, Papai do Céu já sabe

que nós não temos nada?

Vamos rezar, Mamãe. Eu não sei mais... acabe...

Ó Mão de Deus amada...”


“Mamãe, mamãe, um pedacinho só

não haverá de pão?

De nós, Jesus há de ter dó.

Já fui anjo, de azul, na procissão...”


Não pôde mais ouvir. Louca estava talvez.

Desvairada, ganhou a frente do terreiro.

Olhou em torno. O mundo parecia

um só bloco insensível de surdez.

E, ao volver novamente à camarinha,

onde a vela de sebo esmorecia,

com a força negativa que há num zero,

o seu olhar coalhado traduzia

a alma morta de dor e desespero.


Dez vezes mais sublime que Abraão,

a filhinha mais velha apunhalou.

E, abraçando-se ao filho pequenino,

completou o holocausto ao seu destino,

rasgando o já rasgado coração,

donde só fel brotou.


Do livro Oração dos Humildes

©2023 – Todos os direitos reservados. Permitida a divulgação, desde que citada a autoria.


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