MENINO ÓRFÃO – Santino Gomes de Matos
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 11 de out. de 2022
- 2 min de leitura
Atualizado: 24 de jan. de 2024
Dentro da cor desmoralizada do teu terninho ruço,
tingido da pior tinta preta
que se pode adquirir a magros centavos,
menino órfão,
sinto e lamento o teu desamparo,
com um mundo em tua frente, imenso, intratável,
eriçado de egoísmos agudos,
como um cerrado de cactus!
Quando os olhos de benevolência se fecharam,
mil olhos de interesse já te rondam e te perseguem.
Quem sabe lá dos sonhos do pai morto,
que renasciam no filho pequenino,
à maneira de cepas velhas de uma velha vida,
a se prolongarem, milagrosamente,
em vergônteas selvosas!
E não há força que se compare
à dos que sonham e esperam em nós,
à dos que se anulam a si mesmos e se consomem,
para rebentarem mais tarde
na criatura do seu amor.
Menino órfão, não podes avaliar o que perdeste!
Não foram apenas os cuidados do corpo.
Foram também as provisões da alma,
a providência desvelada de quem fartava para tua vida
um celeiro inestimável de desejos,
de bênçãos, de augúrios felizes.
Como te verias grande, se te visses
naquelas pupilas congeladas pela morte!
Eram elas que abriam, diante dos teus passos,
os caminhos planos e enxutos
e faziam descer do alto, sobre a tua cabeça,
a luz flava das destinações magníficas.
E hoje somente te ficou essa roupinha preta,
desbotando, ao sol e à chuva,
a falsidade do teu luto,
porque nem sequer possuis meios de compor,
exteriormente,
o teu luto verdadeiro!
Vê que diferenças nos olhos que agora te olham.
Vê a proteção que te oferecem.
Fazem-te baixar de alturas de predestinação comovida
para o encargo do molequinho de recados,
do pajem de menino rico
ou do contínuo de escritório,
a quem se substitui o livro pela vassoura.
Tudo isso é o que falam os olhos de interesse,
depois que os olhos de benevolente amor se fecharam.
Mas eu gostaria de ver-te pregando uma peça aos homens maus do mundo.
Mesmo sem teres quem lute e espere em ti,
quem pressinta e sugira,
quem ampare e encaminhe,
eu queria que ficasses fiel aos compromissos de sonhos de que mal soubeste.
E que por baixo da tua roupinha preta
medrasse o destino pleno da vida
que te querem roubar, menino órfão!
Do livro Oração dos Humildes
©2023 – Todos os direitos reservados. Permitida a divulgação, desde que citada a autoria.
