MEU TIO, ELA E EU – Santino Gomes de Matos – Parte II
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 1 de out. de 2022
- 21 min de leitura
Atualizado: 6 de fev. de 2024
Voei do cavalo abaixo. No quarto, choramingavam pelos cantos enquanto um velho sacerdote lia orações, com tremuras na voz. Aproximei-me , calando quanto possível, o retinir das esporas que punha um arruído profano na triste solenidade daquele cerimônia.
Feitas as últimas aspersões apagadas as velas, o padre disse-me algumas palavras de consolo: à mamãe, a cada mana; tomou do chapéu e foi-se indo o a pitada já pronta, par acudir aos reclamos de um desejo dificilmente moderado.
À cabeceira do leito, tomei a mão ao querido agonizante, osculei-a com lágrimas, repetidas vezes. Abriu os olhos fitou-me longamente, com as pupilas embaciadas, num crepúsculo de luz; fez inútil esforço para falar, movendo a custo os lábios e recaiu no torpor, desacordado. Meia-hora depois, expirava. Sustive-lhe a vela até o último arranco. A transição deu-se sem grande agonia: um estremeção percorreu-lhe o corpo, abriu um instante a boca, era com Deus.
Vi-me rodeado e abraçado pelas manas que se lamentavam em altos gritos. Mamãe desmaiara, amparada por mulheres que a consolavam, com as expressões costumeiras: – Está no céu, tão bom que era! Deve se conformar, é a vontade de Deus.
Armou-se a câmara ardente. Um pano preto, em quadrado, orlado de galões amarelos; o altar coberto por toalhas de rendas, tendo ao centro a imagem do crucificado; o caixão entre quatro círios de tochas avermelhadas, envolvendo-se em nuvens de fumo, do incenso a arder sobre brasas, nas salvas douradas.
Em torno, homens conversavam recontavam casos do finado, alguns picarescos, provocando risos, polidamente abafados. Mais de um, de vez em vez, se destacava para a calçada, a fumar um cigarro ou ir bebericar na venda os duzentos réis de cachaça, em afugento ao frio.
Circulavam bandejas de café, licores e vinhos. Grandes terrinas de sopa, a que acudia sempre prontos, os da quarta, eram postas à mesa pelas criadas, em afogadilho entrando e saindo, azafamadas, enxugando no avental, quando o tempo lhes permitia, algumas lágrimas de saudade.
À borda de uma mesa, apoiei a cabeça e acabei por adormecer de sono e de fadiga e prostração do corpo e do espírito. Acordei aos primeiros dobres. O sacristão fazia o seu ofício. O sino badalava funebremente e cada nota soluçante e compungida ecoava num pregão de torva realidade, chamando à consciência da desgraça, impelindo mais para. a dor, para o desespero, requintando a agonia.
A casa enchia-se. Pelas calçadas adjacentes, grupos estacavam em cavaqueira, referiam episódios, criticavam as casacas uns dos outros, ou muito estreitas, ou muito curtas, na maior parte, fora de moda. O velho sacerdote rezou os últimos salmos a irmandade de opas vermelhas abriu a marca ao préstito, entre o lamento das últimas despedidas e a inconsciência dos primeiros desmaios. tomei uma das alças do caixão e lá nos fomos, caminho de cemitério onde, num derradeiro extremo de carícia, sobre o próprio coração do filo, desfeito e pranto, deixei repousar o meu inesquecido pai.
IX
UM MÊS DEPOIS
Vêm-me encontrar um mês depois de tão trágico acontecido. Não embiquem por Deus, no necrológio que e saíra as páginas anteriores. Deveras, me não praz referi-las. Só à força de relatar a verdade, conduzo-me por entre os ciprestes do coração, a colher tão tristes reminiscências.
Foi pela manhã, quatro dias após o agradável passeio da vaquejada. Volvia do curral, quando um cavaleiro, em disparada, se acercava da casa e, avistando-e, veio a mim, aos berros:
– É o pai que lhe morre; se ainda o quer encontrar com sopro de vida, a caminho!
Devorei a distância numa enorme ansiedade, em carreira vertiginosa, temendo que a morte e precedesse. Só em parte consegui o eu intento. Não pude recolher-lhe as últimas vontades, que certamente tinha a me ditar, antes de se partir. Sentia-me, agora, investido de alta missão. Aquele olhar moribundo, sagrara-me cavaleiro para a batalha da vida. Revia-me outro, no meu severo trajo preto, compenetrando-me da gravidade e sisudez e homem de idade, na verdura ainda dos vinte anos.
Tudo concorria para maior agravamento de tal estado de espírito. Fiquei de conta do tabelionato. Os ais grados da terra já e saudavam cortesmente. E pelo artigo que fiz publicar na folha loca, com muitos engrossamentos ao juiz, ao prefeito e ao vigário, vi-me admitido na roda da farmácia. Ganhara foros de letrado. Depois, compus oito quadrinhas e recitei-as a modo colonial, sem nada perder do entono e do gesto, numa festa de batizado. Eis-me poeta! Arrepelei o cabelo para trás, deixei até meio queixo, uma sombra de barba por vir. Perdia-me em cogitações, propositadamente, com os olhos semifechados, imersos na concavidade do azul. E dia a dia ais acrescia o meu renome, a minha influência.
Discutia política, opugnava as leis, apodava as instituições e, maldizendo a autocracia, mascarada de liberalismo, suspirava pelos bons tempos do império. Não permitia controvérsia, ciente do valor da opinião que sustentava, gritando, de pé, com o dedo a fisgar o espaço, possuído de santa indignação.
A sós comigo, pasmava daquela repentina mudança. Via-me subido alto muito alto no conceito dos patrícios e por que misterioso elevador não o sabia. Às vezes, atribuía à influência do papai: fazim a que herdasse as suas considerações, como lhe herdara o emprego e um terno de fraque, que, recortado, me ia às maravilhas. Não: o artigo, as quadras, aquelas opiniões que emitia na ágora (a farmácia), com tanta força de convicção, salivoso, salpicando de cuspo o rosto dos vizinhos eis os motivos da minha glória. Refestelei-me nela. Impus-me a consciência do próprio valor: era um grande home.m O meu nome iria inflorar as páginas da história. E anteviam, os argutos e visionários olhos do espírito, toda uma geração, genuflexa ante os seus caracteres de ouro, gordos, luzidios, projetando distante, através das eras, seu esplendor. Depois, um grão de bom senso veio se misturar a essas idiotas fantasias. Medrou e frutificou. E fui perdendo em honrarias, o que ganhava de sensatos pensamentos. Reconheci-me, afinal de contas, a nulidade que sempre fora, a despeito dos elogios não obstante as práticas noturnas em frente à farmácia. tudo abaixo da mediocridade. Minha fama nunca ultrapassaria os morros calvos daqueles sítios, não iria além da consciência obtusa de cinco mil almas, no lusco-fusco do semi-analfabetismo. Quebrei a pena. raspei os pelos falhados da presuntiva barba e tesourei as melenas, com grande trabalho para o mestre Isidro. Dei-lhe quatrocentos réis a ais do estabelecido pela noa feição de uma trunfa.
Saindo das mãos do fígaro, senti na alma grande vazio. Tinha sido também depilada, a pobrezinha. naqueles cabelos que a vassoura juntaria para o lixo, quem adivinha estivesse um ror de ilusões esbaratadas, todo um amontoado de soberbas conquistas que andara idealizando? O que faz uma tesoura entre dois dedos calosos!
Esta noite não pude suportar as pilhérias do boticário achei-as insossas dessaboridas. O rapé do vigário a rabona do juiz, os bocejos do delegado, cochilando, na sua adiantada esclerose, faziam um conjunto incapaz de se aturar, sem grande arrependimento de ter vindo à luz. Antes das oito horas, com grande espanto de todos, estava de pé. E entre a longa fila dos postes de iluminação passei o meu tédio e de tochas, bem serviram as lâmpadas avermelhadas, no enterro de uma glória que morria antes de nascer. Foi quando o coração reclamou os seus direitos e senti saudades da fazenda – do tio, das trepadeiras, do açude, de tudo que me trouxesse recordação de Letícia, dos seus olhos, da sua fala, do seu sorriso.
Reli o bilhete de pêsames que me escrevera. Saboreei-o só então (é bem o modo de dizer), palavra por palavra, letra por letra, espiando através das linhas tremidas a comoção da alma que as ditava. Valia mais do que uma compensação naquele abater de glórias e honrarias imaginárias, com que andei quixotescamente enfunado, por longo mês. tudo caiu, a feroz golpes de tesoura , e a vazante da alma deu ensanchas ao repovoamento do coração. Foi um dormir plácido e repousado, o desta noite, comendo de beijos o travesseiro, tentando ainda que fosse em sonhos, recuperar o tempo perdido.
X
MENSAGEM
– Ora, é boa! Venha de lá um abraço e entre, sem mais cerimônia, nesta muito sua casa.
O Cardoso vinha da parte do tio. D Clarinda resolvera mudar-se para a cidade. hordas de bandoleiros assolavam a região e assim sozinhas, não era bem que ficassem à mercê das eventualidades. O tio a quem recorreram, incumbia-me do arranjo da casa, devidamente mobiliada.
Em três tempos, vassouras e pincéis, deram serviço numa próxima à nossa, que o proprietário não teve ânimo de recusar alugá-la ao filho de meu pai.
– Por serdes vós que sois.
Andaram as coisas a par de minha ansiedade. A mudança se fez quanto antes dos trastes da fazenda. os cacarecos vieram à noite do terceiro dia e o pessoal no quinto, de manhã cedo na companhia do tio, em quem notei certo ar pimpão, arriscando até uma pilheriazinha, sobre esse ou aquele incidente da viagem. E preocupava-se tanto com Letícia se lhe agradava a casa se não tinha saudades da fazenda se..., se...
Tive ímpetos de arrancar-lhe o bigode. Disse mesmo, à puridade, muito chegado à Letícia:
– Que demônio quer este velho?
Ela me olhou admirada, com olhos muito claros donde a inocência jorrava, em luminoso brilho. Tranquilizei-me ainda ais quando vi D. Clalrinda no seu vestido de bolinhas pretas, já de luto aliviado, na mais dengosa das atitudes. Cedemos-lhe o passo. O tio q is nos acompanhar à janela, mas a vontade lhe ficou nos olhos compridos com que nos seguiu. Estava aprisionado pela velha.
– Boa farçante que és! Acredita que cheguei a ter ciúmes. Letícia gorjeou uma risadinha emsurdina, olhando, distraída, o céu lavado.
O tio levantara-se. Seguia já viagem. Em casa, um mundo de serviço. A velha estirou-lhe a ponta dos dedos, sublevando o seio a um suspiro profundo, arrancado do mais íntimo da alma. Letícia desempenhou ainda uma vez o seu papel, chegando a acariciar o bigode do tio. Eu, mais sobrinho embora, limitei-me a segurar-lhe o estribo e a receber-lhe, já do alto do cavalo, o risozinho amarelo, que me caiu em cheio sobre o rosto.
XI
IDÍLIO
Nunca mais frequentei a farmácia. Mal os lampiões abriam nas trevas os olhos sonolentos, já me punha de caminho para as alegres horas noturnas. Havia outros frequentadores da casa. O Messias do bilhar, que rentava a Lilota, a do meio, além dos que vinham atraídos das trovas e modinhas, cantadas ao violão. Na distribuição dos lugares ficávamos sempre a par um do outro. e como se tomados de instintivo respeito abria-nos um claro derredor, deixavam que segredássemos as nossas juras numa liberdade mais ampla de espaço, talvez para mais livre expansão das almas. Entretanto, o pinho soluçavam, gemia numa gama variada de modulações que sempre oscilavam, todavia, entre o queixume da saudade e a mágoa resignada da desilusão. Mas éramos felizes, mesmo insinuados daquela tristeza.
Em noites de maior cerimônia, permanecíamos à janela, contemplando as estrelas ou vendo correr a lua, apascentada de nuvens claras. De quando em quando vinha o ruído de uma gargalhada do grupo que conversava na sala, fazendo honras ao coronel. Não sei se nisso lhe ia desdoura à prosápia de que aliás era tão cioso. Mas a forte paixão do jogo, trazia-o sempre de rompante com os moldes aristocráticos por que pautava os mínimos atos.
D. Clarinda era uma terrível sonhadeira. Os bicheiros já a olhavam até com feição de vítima e mais de um propôs comprar-lhe os palpites, a bom preço, antes de divulgados aos jogadores. A velha recusou nobremente. Toda noite rezava o indefectível rosário de Santa Luzia e o bicho do dia seguinte vinha-lhe invariavelmente à cabeceira por determinação da santa de sua devoção.
O coronel relutou um pouco; entretanto, das razões que se travaram de luta, em seu espírito não levou a melhor a da fidalguia azarada. O calistismo o acompanhava, havia quase um ano. Boas dúzias de bois já sacrificara ao açougue, e a marchar assim, perderia até o ferro. Só uma solução se apresentava: D Clarinda. Ainda olhou para um velho de suíças bem cuidadas, entronizado no ângulo do salão; sentou-se, por instantes, num usado sofá a D. João VI; escutou o ruído de enorme relógio patriarcal e hesitou. Ao meter, porém, as mãos nos bolsos, desceu rapidamente as escadas do velho palacete e dirigiu-se à modesta casa de D. Clarinda.
Desde aquele dia, a sorte sorriu-lhe benigna. O bicho em que jogasse estaria fatalmente condenado a dar. Por experiência, jogou uma semana inteira no jacaré e a roleta com precisão matemática parou sempre no quinze. Os banqueiros, alguns deram em doidos; outros acharam de procurar uma profissão menos ociosa e havia quem prometesse uma surra de pau de pinha na mandigueira da velha.
O coronel sonhou com uns brasões novos, luzidios, desbolorados do mofo dos anos, em que se visse um jacaré escamoso de dentes à mostra, ameaçando tragar quantos atrevidaços lhe investissem os respeitáveis umbrais, sem as devidas reverências e quejandas zumbais. Devaneios de velho, a coisa mais vaporosa e ridicula do mundo, teria dito o conselheiro Acácio.
De tempos em tempos, vinha dar de língua sobre os sonhos e os palpites. Falava da vaca que agora estava leiteira e do coelho que outrora lhe fora duro de roer. Eram dias de cerimônia. Vinha café e escondíamos o escândalo do nosso namoro aos olhos pudibundos do insofrido coronel, tanto mais inchado quanto verdadeiramente chocho de miolo e de dignidade, espaventoso e ridículo.
Ganhávamos com a coisa. Eu, de mim, sentia um verdadeiro alegrao ao dar com a proeminente e aristocrática pana do velho, repimpado na melhor cadeira. Ficávamos à janela. Sentia, de tão juntos confundir-se-nos o hálito, mas não a beijava. Na cassa fronteira, por detrás da rótula, entre as taliscas, adivinhava dois olhos e a língua mais mexeriqueira da terra.
XII
O PÚBLICO
Não tendo fatos positivos, trabalhavam por deduções. E chegaram à criação de várias histórias, que corriam à conta de verdadeiras.
O Dudu – potoqueiro de profissão –, que apresentara a língua à falta de acontecimentos enos vulgares, já tinha de que encher os ócios. Às portas das vendas, no interior dos lares pelas rodas nas calçadas, à noite, repisavam o mesmo assunto. a tristeza a Nanu era uma tristeza comprometedora. O pai morrera de desgosto. Dos hábitos da mãe, o menos nocivo e mais inocente, era o de jogar no bicho. Letícia perdia por muito bela. E de todos, o mais terrível e francamente atacado, era eu.
As cinzas de meu pai viam-se profanadas. E aquilo, assim às claras, metido com forasteiras suspeitas, tinha muito de escândalo, atirado à face das famílias e da sociedade.
Um velho, com oito filhas por casar, alvitrou que se me tomasse o emprego. Tanto rapaz pobre, com boas intenções nas patrícias, para afinal irem os rendimentos à mão de um qualquer. vissem-lhe a empáfia. que sobranceria, em já se sentir mulher do escrivão! Pouca mossa me fazia toda essa celeuma. Incensei com ouro artigo as barbas do prefeito e foi só. Quedei-me tranquilizado. Mas as nuvens se levantaram justamente do lado onde as temia. O promotor público era o único anel de pedra da cidade. O juiz, se o tinha talvez fosse empenhado para sustento de seis filhos, mais os caprichos da mulher. O Dr. Lopes tão velho já, coitado, não cogitava de exterioridades
Nunca duvidei ida influência de um anel. E Letícia namorava aquele com olhos tão gulosos, que me sobrestive assustado. Ela assim, tão linda, o promotor tão feio, mas encerrando-se todo no dedo indicador, que era o mais visto dedo de quantos dedos o mundo contém. Multiplicava-se; estava ao mesmo tempo em toda a parte, tamborilava na mesa, volteava no ar, reluzindo para cair agora sobre o castão da bengala ou ir florir no colete, enquanto o polegar se metia pela cava a dentro. Namorava, sim, num enlevo, aquele anel, como namorava as sedas e os veludos da viúva Monteiro e os sapatos de setim que a mulher do delegado tirava sempre a entrada da igreja, na eterna promessa de assistir descalça aos atos religiosos
Letícia tinha a paixão do luxo, da vaidade . Dias a fio, ruminei a ideia. Sondei-lhe a alma nas mínimas particularidades e o resultado foi decididamente afirmativo. Por que também não usava anel os escrivães?
E cuidei de inventariar prudentemente os meus teres – uma velha burra, um jumento náfego e dois leitões a cargo do compadre Saul, nosso vaqueiro do gado miúdo. Afaste-se a dúvida de pensar que o tínhamos graúdo. A última vaca, de duas, matou-a criminosamente uma cascavel, quando já apalavrada para o corte por duzentos e vinte fachos. No inventário entraram-me também as rendas de escrivão. Depois, veio e contrabalanço o preço dos chapéus, dos manteletes, dos sapatos de mil e uma cores – este para o vestido creme, aquele para o azul, para o lilás que mais sei, pobre de mim, divorciado de Paris por ojeriza gratuita e inextirpável?
Desanimei. Era um obstáculo intransponível entre os nossos corações. E o anel do promotor entrou a dançar-me na vista, em cintilações fosforescentes como um sol em miniatura, enfeixando os raios sobre uma multidão de corações que se adiantavam sôfregos, disputando a primazia daquele dedo em riste. Tive a sensação de uma corrida, a que assistisse, em plena pista. Era uma revoada de desejos em torno à pedra que fugia, perseguida ,ora mais próxima, ora distante, inaccessível como um ponto luminoso no espaço. Manteve-se firme, afinal, num só ponto, bem junto aos meus olhos e formas confusas, num indistinto de figuras humanas, precipitaram-se sobre ela. Mais próximas, pude identificar diversas conhecidas: a Mariinha do Guedes, A Eulália do boticário, a Freduvinda do agente do correio e até a Janoca do juiz de paz, com seus quarenta e cinco anos. Letícia vinha por último e não e parecia mesmo muito vontadosa. Mas a pedra se moveu, no seu único olho de sereia. E, sonâmbula, automaticamente, com a mão idília, foi ela quem a colheu, sorrindo, num riso incrédulo, como se duvidasse de tamanha dita. Dei um salto da cadeira. Precisava arrancar-me àquelas idealizações doentias e agir.
Letícia amava-me e também o fausto, a grandeza. Era um acessório do amor. E mesmo que o amor tivesse em segundo plano, completavam-se, exigiam-se as duas coisas. O difícil estava em conciliá-las, tão divorciadas que andavam. Mas, assim fazendo, seríamos felizes.
– Havemos de sê-lo – concluí e voz alta, convictamente.
XIII
MEIO CAPÍTULO
"Venham as vitelas, o avental e os tamancos do vendeiro mais estúpido, contanto franqueie a burra recheada. A bússola será sempre o ouro, que norteie os afetos da alma e do coração. " Da carta, restou-me só esse trecho, que conservei de cor. O mais, choradeira e exprobrações. amor e ciúme. Faria rir. Rasguei-a em pedacinhos e atirei-a pela janela. Ora, fora-se o tempo do romantismo. A mulher de hoje chora com um olho só; ao outro fica o encargo de ver se lhe pagam bem por isso. E se ri, é de. um riso metálico, tilintante, amoedado. Interesse em mão ou interesse em perspectiva. fora daí a mulher não tem alma.
O comentário é tolo e desenxavido, como quase todos. Não o sancionaria hoje. Saiu-me então ignoro por que cargas d'água. Não estou pelo que disse nem me limitei a dizê-lo.
Deixem passar o paradoxo. Se não deixem-me passar a mim mesmo, que aqui vou, cavalgando um velho matungo, em direitura à fazenda do tio. Dando por paus e pedras, lembrou-me o amoedado cofre do velho e contava, com boa lábia, fazer sair lá de dentro, as alouradas libras por que tanto me afligia.
A manhã era majestosa. Uma névoa fina descia, em delicadas pregas de gaze, pelas encostas dos morros. A natureza rebentara em festões de ramarias, salpicadas de flores miúdas, variando de cor e. de aroma, esmaltando as campinas e embalsamando o ar. O sol, a cada passo, velava a face de ouro e, de vez em vez, espiava pelas cortinas entreabertas as nuvens, coando raios mornos que se estendiam muito longos, num voluptuar lânguido e doce, pela relva macia. Orquestrava-se nos ramos. Vacas de leite pastavam, retouçando o capim verde-cana e nos outeiros borregos cabriolavam, saltitando. em torno das ovelhas mansas, mansas e tristes, com um quê de nostalgia nos grandes olhos parados. Seguia ao bem-prazer do cavalo e daquele bem, daquela cala e suavidade das cousas, impregnava-se minha'alma, em quem crescia e tomava vulto, a mais e mais, grande esperança.
XIV
EU E MEU TIO
Encontrei-o a lidar com os palitos de uma gaiola.
– Alguma coisa por casa?
E nisso lhe entravam, indispensavelmente, os cacos dos dentes no cabuloso sorriso habitual.
– Felizmente, não.
E depois de lhe elogiar a habilidade de gaioleiro:
– O tio já soube que a Bonita estirou o pernil, picada de cascavel? Cento e vinte mil réis perdidos.
Com isso iniciei a conversação. Mostrei-me avarento e mesquinho. Fiz-lhe ver que não era sem proveito que o tinha por tio. Ensaiei gesto de agadanhar o mundo e encerrá-lo numa botija, sobre que morreria de fome e de sede, sentindo, contudo , os dulçores da eutanásia, na consciência da posse.
O velho ia, de surpresa em surpresa, cada vez mais agradado. Saíra-me a coisa, a talho de foice, e desfechei o golpe. Prometia-lhe bons lucros, decuplando, centuplicando as moedas que me emprestasse. Faria bom comércio de peles; o algodão subiria de. preço; dez mil quilos cobrados por pouco mais de nada revendiam-se com ótimo lucro e que coisa viável. Ford, o grande industrial, começara também do começo. Quem sabe? Mas o ouro precisava de sol para germinar e produzir. embolorado num fundo de arca, saciaria a vista, mas o coração...
– De quanto precisa o menino?
Perguntou-me o velho, certamente vencido pelas minhas palavras, pelo fulgor dos milhões que lhe fizera cintilar diante dos olhos, que a meio até fechava, ofuscados.
– Dez contos, meu tio, uma insignificância.
– E tenciona negociar de fato? Segundo ouço dizer... talvez histórias, mas... não anda de casamento e vista com a Letícia?
Fiquei um tanto atrapalhado. O tio insistiu.
– Ora, de que vale negar? Todos sabem, não é nenhum rime.
E o seu sorriso pareceu-me pungente, cravado de um espinho doloroso quiçá compadecido.
Deixei-me seduzir pela piedade que lhe adivinhei e relatei-lhe tudo, com voz queixumosa. Praticaria uma obra de caridade Aquele amor era parte integrante de mim mesmo, de minha vida. Sem ele, naufragaria, como barco desmastreado, ao sabor das tempestades do ar, que não levam a melhor, às tempestades do meu coração. Ela tinha aquela fraqueza e quem não as tinha? Amava-me porém; seria capaz de grandes sacrifícios, que a minha dedicação, todavia, procurava evitar e contava, para isso, com a robusta proteção do tio.
Vi lampejar um vislumbre de ideia nos olhinhos redondos do velho. A recusa foi peremptória, formal. Grandes gastos... ano escasso... safra pela metade. Além disso, o empréstimo do promotor, a quem não podia faltar, com duas demandas que lhe tinha em mãos.
Desconversei. E o cavalo, vergastado de furiosos açoutes, bem falaria do meu desapontamento.
XV
– Estão enganados. Não me levam assim, sem mais nem menos, às três por quatro.
O cenário, um gabinete. A postura, a clássica postura das mãos para trás, enquanto o compasso das pernas media o chão do aposento. E como o pensamento martelando sempre a mesma ideia fosse insuficiente para convencer-me, repetia uma e outra vez, energicamente: Estão enganados. Não me levam assim, sem mais nem menos, às três por quatro. Mostrarei.
O verbo no plural pertence ao tio e ao promotor. Julgava-os mancomunados, em ruim combinação para me perderem. A trigésima vez que a frase e saiu, toei do chapéu e quando dei por mim, foi em casa de D. Clarinda. Já não havia hesitar e não hesitei.
Letícia ouvia-me, mas pouco tive que dizer. Falou-me desabridamente. E quanto mais se enraivecia, vendo-se alvo de tais desconfianças, entrava-me à alma uma paz indefinida e salutaríssima.
– Então...
– Como queira, já lhe disse. Até neste instante
Ficou tudo combinado. O prazo, apenas o indispensável para os banhos. Não se incomodava com luxos. Tivéssemos o necessário, era a conta. O promotor! O que faltava! Nem por sombras he passara semelhante ideia. Não enxergava ninguém ao pé de mim.
– Mas o conforto, as comodidades de que se priva!
Não me cansava de o redizer, para ouvir sempre, num deleite de todos os sentidos conjugados;
– Que vale o mais, sem amor?
Não ouvia só; bebia aquelas palavras, contemplava-as, uma a uma, desenhadas no espaço, palpava-as dentro do coração. Mas o conforto, as comodidades... que vale o mais sem amor... sem amor sem amor... sem amor... Ela o dissera, ela..., ela..., ela...
Estava tono de satisfação. Na rua, encontrei o promotor. Rasguei-lhe um cumprimento a toda extensão do braço, com um sorriso de triunfo, largo, homérico. Por toda a semana, andei trabalhando sem remorsos. Como duvidara dum anjo daqueles! Mas, perdoasse-me, era o muito amor, o temor de perdê-la, que assim me super-excitava a imaginação.
Correram-se os primeiros banhos. A novidade espalhara-se muito antes, repetida de boca em boca. Transbordava-me, não cabia em mim. Abraçava os mais íntimos e cochichava-lhes no ouvido, em segredo. Cheguei a falar ao Dudu que tinha o dom da ubiquidade, como todo espírito malévolo. E num dia, em menos disso, o caso estava entregue ao completo da cidade inteira. Por que não se dava o casamento dos velhos no mesmo dia em que o nosso?
Verdadeira esfinge, o tio. Vinha por todas as feiras semanalmente, e era infalível na visita. Mas não se decidia. Tentava explicá-lo. É um homem explosivo. De um momento para outro, estoura com os papéis prontos, o padre e o sacristão. Hão de vê-lo. Acredito que já tenha as dispensas para o casamento de improviso. Só se não o conhecesse. Gosta de se divertir com a surpresa alheia. D. Clarinda esperava. Senão quando...
XVI
DEMITIDO
Estava demitido, irremediavelmente demitido. O telegrama não me caiu das mãos, porque o segurava com os dedos crispados. Fora na farmácia. O Garrido piscou aos outros, quando me entregou o papel verde.
– Parece há urgência.
Li-o precipitadamente e talvez desmaiasse se em volta de mim, tantos rostos ávidos não se abrissem em pontos de interrogação. quis sorrir. Procurei, por todos os meios, estar calmo, mas acabei estendendo o telegrama a todos, deblaterando, clamando aos berros, contra semelhante injustiça. a víbora, só no calcanhar, ousava morder-me. Viesse de frente para eu esmagá-la.
Mostraram-se admirados. Só o Medeiros – o das oito filhas por casar –, traía uma satisfação imensa, cofiando o bigode, meditativamente. em todos os olhos enxerguei porém, a mesma expressão de mofa. Vingavam-se os velhos, na sua mediocridade, se não falência total de conhecimentos. Nem por isso menor influência exercia. Fosse agora comer a aritmética e o francês da minha fama. Vivesse de brisa e de elogios.
Mudei de tática. Pedi, roguei, exorei, humildemente, a quanta casaca se arrogava foros de prestigiada. Subi as aristocráticas escadas do coronel, com os rogos de D. Clarinda e um palpite para o bicho da tarde. Tudo em pura perda.
O pedido de demissão, se o houvesse não partira de nenhum deles. E mais me desanimavam as boas referências que agora me faziam.
– Um moço distinto com sua ilustração que pena!
Aquilo me sabia à ironia de u panegírico fúnebre, q e o morto tantas vezes recebe do pior dos inimigos.
O tio, no outro dia, trouxe-me um pouco de calma, inteirado do acontecido. Em mim, a passividade outra vez cedera o passo à exaltação. Berrava furioso, contra tudo e contra todos. Ele, avisado. e prudente: Valia anates agir. doque falar. Precisava vingar-me daquela gente. Um moço esforçado, com seu preparo, longe dali, quem sabe seria fácil tentar fortuna? Terra sem futuro! Muito lhe pesava que me fosse; entretanto, o dinheiro necessário, punha à minha disposição; a mamãe e as manas ficavam à sua conta. Muito lhe pesava; mas.. lá fora... um moço esforçado...
A lembrança de Letícia fez que me opusesse ao plano. E o velho, persuasivo, com entusiasmo inédito, único quiçá, em toda a sua vida.
– Então! Se se amam, ela que espere. Ficando para aí, a vegetar, na ociosidade, nem uma eternidade inteira para obter os recursos com que botar casa e família.
– O tio, querendo, podia nos ajudar aqui esmo – , teimava ainda pungido da ideia de partir.
Pintou as coisas com cores negras. Até andava sacrificado. O ano entrante, via que não mostrava boa cara. Fosse uma seca, que Deus nos livrasse! Fazia aquilo por me proteger. Não querendo, lá isso era outra coisa. Ficava o mesmo dito por não dito.
Letícia mostrou-se corajosa, sem uma lágrima. Mas, quanta vontade de vê-la chorar! Era um desejo secreto, que recrescia veemente, como se as suas lágrimas viessem apagar os vestígios de uma desconfiança que de todo ainda se não fora.
Deitou novas raízes, coo se estivesse à espreita de uma oportunidade. E fi-la prometer, sob juramento, pelos cinzas do pai, como não se casaria com o promotor.
– O promotor! Qual promotor!
Arrependi-me. Confiava, sim, confiava e esperava. Esperasse também. Lá fora, o trabalho e a esperança da felicidade, que era ela mesma, haviam de concorrer sobremaneira para, dentro em pouco estar senhor de bela situação.
E tomando-lhe a mão, dedo a dedo, fui enumerando. as belas cousas que teria, como a uma criança a quem se promete guloseimas, brinquedos e presentes, contanto seja obediente e boa.
Não chorou! Ao último adeus saltaram-me duas lágrimas de que me corri, ao apelo de su voz:
– Sejamos fortes.
XVII
EPÍLOGO
Três anos depois. Estou de volta. O dia é de sol; poucos convidados. A noiva emerge dentre os roçagantes véus de gaze, como a estrela d'alva dentre os vapores. de ante-manhã.
A comparação foi do boticário, quando me apertou ao peito. Empós dele, vieram outros, todos de fraque, pródigos de abraços e de bênçãos que queriam derramadas sobre tão santa união. Pagava-me com juros dos sacrifícios curtidos, da tortura da ausência cheia de incertezas, menos no êxito dos negócios do que na felicidade que deixara à guarda de uma mulher. Não digo da minha alegria, nem acredito que dela sejam capazes de fazer ideia exata. Era a alegria de um sonho, alegria imaginária, com que o espírito se repasta de um modo incomparável, refugido à realidade, com os sentidos anulados pelo sono. Sonhara. Devia ter sido daquela maneira, o casamento dela. E a alegria do outro, semelhante à alegria que me deixara tais sulcos na alma, com uma impressão de gozo que me sacudia e arrebatava, a cada instante. Se não fora tudo um sonho! que bela que a vira e tão minha! Continuava a sonhar acordado. Não precisava esporear a memória. toda a cena me estava bem patente, diante dos olhos. O contato, ainda o sentia da sua mão na minha, quando o padre as uniu sob a estola. Ligou-se a outra visão, de uma tarde languescendo e dentro dela o primeiro toque das nossas almas, no mesmo gesto significativo. Mas era já a inconveniência da realidade. À noite, o noivo fora sempre eu, até o fim. Agora, quando menos esperava, interpunha-se a imagem do verdadeiro: do marido. Partia-se o encanto; refrangiam-se duas figuras. Em minha imaginação: uma, acompanhada de saudades (e por que não dizê-lo) de amor ainda, na sua graça e sedução; a outra, em que me vingava de todas as penas, com o ódio que debalde tentava desviar para ela.
– Ao menos um simulacro de vingança – alvitrou uma das manas, penetrando a causa daquela tristeza.
Até me esquecera de que vinha preparado. Abri as malas. Uma infinidade de cousas. As últimas criações da moda, os figurinos mais novos para os modelos. Casaria com qualquer de tantas solteiras. E Letícia, destronada, descendo do pedestal de princesa, havia de invejar-lhe o requinte de luxo e de elegância. Quem sabe com uma pontinha de arrependimento?
Mas as decepções sempre andam juntas Requerem-se, exigem-se, uma às outras, consecutivamente.
Via-a pelas festas do Natal. Um vestido de cassa, modesto e simples, sem requiquifes nem bordados. Sapatos comuns, de couro de bezerro. Uma mantilha de rendas, sobre o cocó, atravessado de pequenos grampos. Dava o braço ao tio, em quem quase podia mais o reumatismo do que a vontade.
Adiantei-me a cumprimentá-los. O tio ensaiou uma careta, à guisa de sorriso. Ela a sorriu de fato, naturalmente, estendendo-me com muita simplicidade, a mão a beijar. tinha ainda o mesmo gesto de carícia para o bigode do velho. Não pude fazer um juízo seguro, mas decidi que só agora era fingido.
Foi a penúltima vez em que a vi. Abrira banca de advogado, rábula para todos os efeitos. Tomei algumas demandas ao tio e se as perdi não foi por vingança. Advogado novo e mau. Talvez. Saibam porém que os honorários ficavam por conta dos velhos favores atrasados. Isso sem nenhuma intenção de defesa ao juízo feito.
Quando da morte do velho, compareci ao enterramento. Houve mais do que simples expressão e pêsames, na comoção com que a apertei nos meus braços de sobrinho, que muito diziam de uns braços de esposo Compreendeu-me sem mais aquela.
Entrara, porém, na posse de rica deixa e queria usufruí-la a seu bel-prazer, sem intromissões de outras mãos. Para isso, curtira dias de extrema simplicidade, enquanto as rivais esplendiam de luxo e contentamento. Informou-se. Não me iam bem as finanças. Pouca clientela, além de algumas dívidas que resgatar. Por isso, ou por um ajuste adrede feito, foi a vez do promotor. Faltava-lhe aquela pedra, para satisfação integral das ambições.
A minha vez – a vez do amor – esperaria outra oportunidade, que não veio. Fora fiar demasiado na sorte.
