MEU TIO, ELA E EU – Santino Gomes de Matos – Parte I
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 1 de out. de 2022
- 19 min de leitura
Atualizado: 6 de fev. de 2024
I
NA FAZENDA
Não que tivéssemos propriedades no campo e mesmo em qualquer parte. Os honorários de meu pai, no seu emprego de escrivão público, apenas davam para enfrentar despesas de primeira necessidade e, não sei se por obra de algum empréstimo, conseguíamos aparecer com relativa decência.
Tio Fagundes, irmão mais velho de mãe, era, entretanto, um rude agricultor e morava a poucas léguas de distância, numa fazenda bem montada.
Passava pelo criador mais abastado de vinte léguas em redor. À tarde, q quando o bugio estrumai nas quebradas, repercutindo em eco para muito além, recolhiam ao curral mais de oitenta vacas, de abres pejados. par os bons ofícios do queijo e da coalhada.
Aos domingos, ficava de folga. Vagueava na rua, enfardelado no menor dos ternos ou deitado displicentemente, em mangas de camisa, relembrava saudoso os dias da fazenda, enquanto os sinos sonorizavam o espaço claro, dando a ilusão de que fosse a própria luz que cantasse, nas irradiações deslumbrantes.
Revia, em mente, o tio com o seu bigode murcho, de longas e escassas felpas, caído ao canto dos lábios e calvo na parte imediatamente inferior ao nariz; os olhinhos de ervilha, engastados em pálpebras papudas, afeitos às considerações longas e minuciosas; a face nédia, cor de jambo; as frontes abertas nas pronunciadas entradas de uma semi-calvície; a voz lenta, com fanhosidades catarrosas, devido ao uso em excesso do tabaco, num corrimboque de chifre, com tampinha de madeira, donde pendiam duas correiazitas sebentas e meio gastas do contato constante dos dedos. Curto de braços e de pernas, quase obeso. Um cinturão de palmo abarcando-lhe o abdômen e deixando a descoberto enorme fivela de metal, escrupulosamente areada, como um lavo, sobre o brim escuro das calças largas – indústria caseira da velha Fulgência.
A camisa de fustão de peitilho duro, arremangada até os cotovelos, facilitava-lhe os movimentos no fabrico das gaiolas, trabalhadas com esmero, algumas em forma de torre, de compartimentos divididos, dando a maior comodidade aos seus alados prisioneiros.
Tinha boa coleção deles. Canários amarelos, pipilando alegremente, em saltitos vivaces, com uma nota gaia de melodia e de cor. Corrupiões nostálgicos, num luxo de penugens, assobiando dolências de mágoa. Graúnas negras chorando a sua viuvez, plangentemente, saudosas do cocar farfalhante dos palmares. Galos de campina, pitorescos nas suas cabeças vermelhas, exímios flautistas empenhados em dueto, casando aos tons alegres, outros tristes, queixumosos, em surdina, como se tivessem alma para sentir certas emotividades da melancolia, nos seus gorjeios compassados e lânguidos. Patativas trêfegas, numa loquacidade inesgotável de chilrreios irrítmicos, mastigados, variando de modulação por vezes imitativos, sem nexo, e contudo embevecedores, semelhantes ao grazinar confuso de mil vozes de crianças, indistintamente, ouvidas.
As gaiolas pendiam de pregos, na varanda que circundava a casa, da frente e dois oitões, com peitoris e tendo ingresso por quatro degraus de pedra, intersticiados de ervas pelas fendas, verdejando escorregadios de limo.
Defronte, um pé de trepadeiras que sobrevivia a todas as secas, morria no verão rebentava às primeiras águas, em corimbos de flores escarlates, vestindo os desnudos espeques de uma latada, por onde galga, até se estender numa cúpula encantadora. A cajazeira, de tronco nodoso, que me fornecia o material dos carimbos, gravados a canivete; o açude, marginado de verde alcatifa onde apetecia rola, embriagado ao cheiro seivoso do amto tenro e intonso: a água lisa, espelhando o céu límpido azulino ou com frisos de asas, já agora enodoada de sobras, quieta, dormente, angustiada entre os altos paredões de pedra e cal, apenas a quando e quando, num glu-glu, abrindo-se ao mergulho das marrecas e galinhotas.
Tudo isso era objeto das recordações em que me comprazia, embora ralado de saudades.
Que bom que era na fazenda! E a velha Fulgência, na sua saia de chita, sem casaco, tendo à mostra os sovacos e parte dos seios fartos balançando! Gordalhufa, de braços musculosos, cuidava das panelas, provando-lhes o caldinho no regular dos temperos, ou ainda, cheia de massas, ralava o milho da canjica e das pamonhas, coando o leite em panos alvos, cheirosos, de algodoim do reino.
– Uff! Demônio de mosca! Com dedada mestra, tirava do alguidar parte do alourado mingau que batia com uma colher, destramente, estremecendo as tetas ao movimento de fazê-lo.
Depois, os pratos alinhados no fogão, de enormes e altos tijolos, e a velha procedendo à repartição, por entre novelos de fumaça ao bafo quente, apetitoso, dos bons pitéus sertanejos.
II
OUTRO MOTIVO
Este ano, mais do que nunca, custar-me-ia deixar a fazenda.
Ainda me ative ao pensamento de me improvisar feitor e ficar de vez, mungindo vacas e cabras, no feliz embrutecimento das coisas simples e naturais.
A pouca idade e o completo desaso para os misteres do campo, falaram a tempo de me demover de tal propósito, que quase o fui expor ao tio Fagundes.
O projeto nasceu do conhecimento que fiz com uma vizinha da Pitombeira (era o nome da fazenda), filha de uma viúva, a quem, de último recurso, restou, após a morte do marido, a nesga de terra em que recolhera com as três filhas.
Uma manhã, deu-me de ir visitá-la, picado da tarântula da curiosidade, a quantas informações do Cardoso, que de pouco aí estava como agregado, vaqueiro e capataz. Tomeu-o por guia, já adiantados em boa camaradagem. No caminho, me ele foi inteirando de alguns pormenores relativos à genealogia da família, ao seu antigo esplendor e consequente decadência.
O sangue não era do melhor. Bem apurada a coisa, podiam se lhe encontrar impurezas de escravos. E avó daqui, tataravó dacolá e filhos bastardos e irmãos colassos, em nada adiantou sua confusa explicação. Sabia, porém, o bastante. Soube mais – que o defunto dono da propriedade, servira na guerra do Paraguai e, depois disso, alardeara quatro fundas cicatrizes, que eram outros tantos ingressos à à admiração dos coevos e ao preito dos pósteros, possivelmente.
Fizeram-no aposentar no posto de coronel. E com serem vultosos os ordenados e ainda maior a prodigalidade do velho e glorioso soldado, rodeou-se de tanta consideração e prestígio que lhe esqueceram a procedência pouco honrosa e nas veias, passou a correr-lhe outro sangue – o sangue dos heróis, com certeza diferente daquele do comum dos mortais.
Vivia de festas, mais a conselho dos médicos, que a epilepsia o vinha destruindo a olhos vistos, abrindo-lhe a fundas enxadadas o sombrio da cova.
De fato. Portal dela, la estava e o enterro custearam-lho os amigos, num rasgo de generosidade extra-abundante. Afora aquela propriedade, nenhum outro haver, nada deixava à mulher e às três filhas. O mais, levaram-lhe os bailes, os serões, os pique-niques, em que também naufragou a honra das cãs, vilmente desrespeitadas. Tal asserção, a crédito e por responsabilidade do vulgo. Foi quanto ouvi. Tínhamos chegado.
A casa descansa numa eminência, a cavaleiro da esplanada que se estende, em luxuosos capões, tapisada de verdores. Abrem-se-lhe aos flancos dois carreiros íngremes, calçados de pedras miúdas, que dão para o riacho, a deslizar entre cascalhos, num chorrilho de águas claras, sombreado de frondes.
A poesia do sítio, rouba-a, entretanto, o mato em audaciosa invasão, quase a afogar as paredes da casinhola, laivadas de grandes riscas de cupim.
– O que é a falta de um homem – disse o Cardoso, cofiando o queixo raspado, a passear derredor, olhos de piedade.
Efetivamente. O curral em aberto, com as estacas caídas, via-se assenhoreado de urtigas. Roçados de milho, atrofiados, amarelecidos, acenavam de longe, em bracejos de náufrago, comidos das ervações. A casa de farinha, com os caibros à mostra, sem telhas, servia de pouso aos bodes uma roda a um canto, donde saiu a cumprimentar enorme lagartixa, dando de cabeça repetidas vezes; cangalhas desempalhadas; arções de sela imoralmente nus; duas barricas apodrecendo, bichadas; e era quanto havia no interior do galpão. Saímos, de medo que nos viesse em cima algum desabamento.
Fiquei a considerar naquelas ruínas. A farinhada, que boa festança! Feita a arranca, o patrão selava a burrica, punha-lhe por sobre o lombilho, o coxim alvo e macio e era vê-lo trotar, estrada em-fora, com o chapéu de couro enfeitado de berloques azuis.
Ia aos convites. Ninguém devia faltar à festinha, embora fosse em casa de pobre.
– Pobre, pobre! Pabulagem mandou lembrança. E as Mariazinhas, as "nhás" Vivenças, as comadres Sinharas, corridas, lhe traziam o café, umas vezes em xícaras, outras. em tigelas encardidas, dizendo alegres, antegozando a pagodeira:
– Quem "havera" de faltar, quem "havera" de faltar, gentes!
À À tarde, voltava ao trote da burrinha passarinheira. Recordava-se. vinte e uma xícaras de café. Só em casa do Venâncio, não no deram. A Dorinha, muito magra, com o filhito escanifrado, agarrando-se-lhe gulosamente às tetas, contara-lhe com lágrimas o estado do marido. A última criação fora sacrificada, e em casa, nem café. Não fosse o milho, que o teve em abundância, mercê de Deus, e era a fome a fome negra.
– Ora, o Venâncio tão trabucador. É coisa de feitiço, botaram quebranto no rapaz – dizia já em casa, relatando o caso à mulher, que se persignava, horrorizada, a esconjurar o demo.
Chegava, enfim, o dia da farinhada. Desde cedo vinham vindo os convidados, cada qual com o seu lenço, escrupulosamente lavado, branco, claro, faiscando à luz. O patrão se levantava. a algazarra das meninas de sandálias novas e flor no cabelo, por instantes emudecia. Compenetrado da cerimonia, pausadamente, imprimia o dono da casa brandos movimentos na enorme roda da moenda. Dois caboclos, nus da cintura para cima, logo o substituíam, um de cada lado, e daí a pouco a plena velocidade triturava-se a mandioca.
Estendiam-se os lençóis, dispunham-se os fornos. O ar enchia-se de grânulos alvos. Casquinadas de riso, tagarelar alegre de vozes, juntavam-se ao estrupido do maquinismo, ma aperfeiçoado, rangindo, tangido à força de músculos.
Revezavam-se os rodeiros. Os lugares eram acesamente disputados. O patrão intervinha:
– Moderação, meninos, moderação.
Repinicava-se a viola. O cantador soltava a voz rústica. gutural, glosando motes, com um só estribilho porém, num ramerrão único, 'lovando" a farinha:
Mandioca não tem "arma"
Nem "arma" nem coração,
Só tem a boa massinha
De que se faz o pirão.
À noite, dançava-se. E enquanto durasse a farinhada, durava a função: os sapateados os batuques, na sala ou no terreiro, à luz pálida das lamparinas, apensas de ganchos ou à luz da lua nos esplêndidos plenilúnios de agosto.
– Apeia! O Cardoso já em terra, segurava-me o estribo. Foi tempo de despedir as recordações.
III
MÃE E FILHA
Subimos três degraus desconjuntados. A vivenda caiada de fresco, ainda assim não lhe disfarçara a brocha, os grandes estragos do tempo. A salina onde nos introduzimos deixava a mesma impressão. Tinha contudo certos toques de graça na sua pobreza, deixando transparecer em tudo uma mão artística de mulher.
Toda a mobília eram seis cadeiras e uma consola com uma jarra ao centro, tomada de flores novas frescas umedecidas ainda do orvalho matinal. Pelas paredes, quadros e retratos. Havia um pouco de alma em cada cousa, dispostas muito a propósito, com apurado gosto e o ambiente impregnava-se de perfume suavíssimo de poesia – essência do céu que lhe ficasse das asas de um arcanjo, adejando luminosas, de um a outro extremo da pequenina sala.
Não sei se será demais a exame de primeira vista. Requinte de observação talvez ou impressão que houve do tempo, o lustre e o perfume com que hoje a consigno. Em todo caso era o que havia na sala. E daí, quem sabe se através do encanto e da doçura que lhe encontrei em tanta singeleza, dava-me rebates o coração, adivinhando aquela que, de todos os tempos, viera destinada ao seu único e verdadeiro amor?
Afinal de contas descrevi a sala, com suas cadeiras, seus quadros, suas flores. Foi quanto vi. Talvez algum sabugo pelos cantos. Com certeza armadores, ganchos para sela, alguma esteira de cangalha. nada disso divisei. Fiquei-me com o meu sentimento ou não fosse tal, com a imagem do que e pareceu arranjos femininos, do que me soube a mãos aristocráticas de mulher. E se só hoje assim pensasse, se só hoje para mim tivesse o tom suave que lhe empresto, aquela saleta? Não me explico. Digo da saleta, com seus quadros e suas. flores. Aí vem D. Clarinda. Ao lado, um anjo em forma de mulher.
D. Clarinda adiantou-se, o anjo adiantou-se. Para falar só dele, estendeu-me a mão de neve e foi com profundo respeito que a apertei na minha, cioso já do mesmo prazer que ao Cardoso seria dado. Soube aproveitá-lo o capataz. À conta de lhe dar não sei que noticias, ficou-se a falar, com aquela mimosa mãozinha presa à sua, por bastante tempo. Zebra! Que não me ocorrera outro tanto. O pretexto seria qualquer um. Diria da casa muito poética, dos arranjos muito doces, da sovinagem do tio, do seu reumatismo, da condescendência. Ou mesmo sem pretexto. Enquanto pensava, era o que podia ir dando à D. Clarinda, assediado da sua pasmosa loquacidade. Afinal, sempre lhe mandei um pouco de espírito, através dos olhos.
Via-a enleiada, a murmurar com uma pontinha de despeito, ferindo-lhe o canto dos lábios. – Apesar disso, terá em nós boas amigas. Malditas reflexões. em rematada indelicadeza para com a velha, dera de minha parte, aquele gesto do Cardoso. seguramente na proverbial usança da falsa modéstia, proclamara-se falha da melhor virtude que possuísse. E aquele "pois-não" articulado tão naturalmente, sublinhando tudo, malcheiroso à blasfêmia. De novo cognominei-me zebra. E daí. apouco, desfazia-me em elogios à viúva. Gabava-lhe a velhice - o desdentado da boca, o sarnento da pele, a ruga das feições e até mesmo um sinal cabeludo ao lado direito do queixo, como complemento indispensável e beleza. Desta feita o anjo mostrou a face de mulher. Até aí mantiver-ase seu tanto arredio, quase triste, com o regaço juncado das pétalas de uma rosa meio desfolhada. A transformação verificou-se imediata. Logo aos primeiros galanteios, que a velha recebeu cativada, voltou-se risonha para o Cardoso, achegou-lhe a cadeira e entre dois sorrisos, principiou doce colóquio.
Confesso: senti-me bastante indisposto. Hoje, ficaria desvanecido. Mas, naquele tempo, andava ainda na feliz ignorância dos disfarces, das linhas tortas que se seguem, com vista a fim direto. D. Clarinda veio em meu auxílio, no espanejo da alegria que as minhas palavras lhe causaram.
– Deem-me licença, voltarei num instantinho.
Fiquei senhor da situação. Mal a velha abandonou a sala, a desfalcar suas compoteiras, fiz desviar as baterias para o verdadeiro alvo. Não conhecia o fingimento, mas dele já usava, como qualidade inata, congenial, em toda criatura. A praça entregou-se logo. Já estava entregue, isso é que é. Havia um grande traidor dentro do próprio recinto blindado – o coração. A frase, creio que não é minha, mas apanhei-a a jeito. Com ou sem ela, entretanto, coube agora ao Cardoso ajeitar o barbicacho do chapéu, bater o pó das perneiras e chegar, por fim, até à porta, aspirando um ar mais puro, visivelmente incomodado.
Ele e a velha deviam se entender bem. Pelo menos, igual papel lhes coube, com a diferença de que as minhas palavras à D Clarinda envolviam uma desculpa. O pobre do Cardoso, esse não fizera nada para merecer aqueles olhos, aquele sorriso, que se atiravam para ele apenas no propósito de serem refletidos, coando-se-me para a alma, em fel de ciúme e despeito.
D. Clarinda entrou. Dizia à Letícia toda casta de galanteios, que ela ouvia, entre complacente e enfadada. Emendei logo a mão, à vista dos pires e do doce. A velho, só a enxerguei depois da gula satisfeita. Entretanto, o instinto me a fez pressentir, transportando a mãos ambas, uma bandeja redonda, com lavores de tinta no fundo mareado. Deve ter sorrido e murmurado alguma escusa quando me ofereceu os seus cajus em calda. de nada sei, se não da calda, dos cajus, nadando dourados, desafiando o apetite mais satisfeito, quanto mais a mim, no esgotamento de duas declarações de amor. Silenciei. Os galanteios que em presença da mãe lhe dirigisse à filha seriam verdadeiro escândalo naquelas circunstâncias. Ou não houvesse assacado um ror deles, aos cabelos grisalhos da matrona. Mas, primeiramente me falaram os lábios, depois o coração.
Deliciosa menina! Acompanhou-e até muito longe, com um sorriso e um adeus. A custo refreava o desejo de voltar. Para que, se lá ficava cativado e preso, com o coração e o sossego seriamente comprometidos?
O capataz deu a língua a valer. Um sem conto de cousas que me hoje não recordam, nem me recordariam então, embebido nos meus pensamentos, sem lhe prestar ouvidos. O portão rangeu, abrindo-se. foi quando dei acordo de mim. Esporeei o animal e, a trote largo, ganhei o pé da calçada, onde o tio cachimbava, pachorrentamente. O almoço esfriava à espera a culpa da demora, descarreguei-a na alimária, inquinando-a de lerda. Ninguém me contestou. O capataz já lá ia nos seus afazeres.
IV
CONTRASTE
Estou, que é para dar uma ideia mais exata da imperfeita e nunca inteiramente alcançada felicidade na terra. Por isso ou por aquilo, o acaso sempre acha de reunir num só dia acontecimentos que contrabalancem com a tristeza, a alegria dentro de nossa alma.
Ruim capricho, na verdade. Um misto de claridade e de fuligem, há de envolver sempre a imagem de qualquer sonho cor de rosa que se entreveja. Descambei no cediço e não é só. Outra forma não encontro como diga que estava apaixonado e pervagava, de quimera em quimera, de ilusão em ilusão, cada qual mais utópica e brilhante. Ouviram? Em pleno desenvolvimento das ideias novas, das novas formas. Mas meu amor tinha o característico atávico das idealizações romanescas. Na impotência de construir na terra o edifício de minha ventura, construía-o nas nuvens – castelo soberbo de aprimorada arquitetonia. Muito mais prático seria fazer-me gatuno elegante. Não no quis, nem me aventaram. Permaneci sonhando e foi mal que perturbassem os devaneios ingênuos de uma alma ingênua. Mas vamos ao que me fazia triste, num dia de festas para o meu espírito. Descansem a coisa vai sem lamento de maior, apesar dos pesares. Recebera uma carta, mais ou menos nesses termos:
Meu filho, já não nos encontras, quando voltares, na mesma casa, nem na mesma rua. Teu pai se acha demitido, por influência da política contrária, que vem de subir. Não quis aguentar com a vergonha de vira-casaca (meteram-se nisso grandes empenhos) e por conduzir-se dignamente, esperam-nos dias de negro sofrimento, senão de miséria. É lamentável o desprendimento de ceras virtudes elevadas: padecem fome e andam despidas. Nós pô-las seguir, seguir-lhes-emos em tudo, sentindo-lhes já os duros efeitos, na muda da casa e da rua. A atual mansarda fica-nos numa travessa, sem iluminação nem calçamento, mas otimamente policiada dos urubus, que fazem a limpeza pública. Acho conveniente esconderes esta do Fagundes, pouco amigo de escrivães e escrituras, e apologista da enxada e do arado. Por seus conselhos dele, teu pai seria um lídimo roceiro, sem dedo de miolo, porém com fartos paióis de milho e de arroz. Abençoa-te, tua mãe.
Tinha os olhos perlados de lágrimas, quando terminei a leitura. Eu ali na abastança, enquanto por casa, talvez a necessidade, a penúria. Não me deixou sem resposta a voz do dever filial. Urgia partir, urgia tomar sobre mim a pate do fardo que ,de direito, na crueza do destino que os feria.
Deu-se todavia uma mudança de cenário. De chapéu à mão, saudava a filha da vizinha, que me atirava, nas pontas dos dedos, delicioso adeus. Vieram outras razões. Afinal de contas, seria mais uma boca requerendo pão. Fiquei. Fiquei a roer coisas tristes e alegres, numa alternativa de mal e de bem, que me punha a alma em estado indefinido.
V
O ALPENDRE
Seguiram-se dias enevoados e tristes, batidos não raro de fortes aguaceiros, que se precipitavam no caudal das enxurradas, para depois amainar no choro soluçado dos regatos, por entre as pedras, à sombra vasta das oiticicas, num lamento de estranhas mágoas. Permanecia em casa. Nem mesmo ia aos convidativos banhos no açude, coberto de limo, com marrecas esvoaçando rente, qual se procurassem o espelho límpido das águas, no desejo de verem refletido o gracioso perfil. Às vezes, jogava cartas com o tio. Perdia alguns tostões, que ele amealhava sem cerimonia, nunca os dispensando. quando não, à janela, atraía-me a vista dos outeiros, ondulando em maciço de verdura e, se o sol conseguia arredar a coberta. das nuvens, ia com algum bem-te-vi nos seus voos curtos pelo espaço descrevendo parábolas, sem se distanciar do ninho. E eram devaneios sobre devaneios. Queria o nosso amor assim suspenso, oscilando entre o céu e a terra, cheio da fragrância das flores e da música dos pássaros, afagado. dos zéfiros iluminado de raios tépidos de sol, por entre as cortinas verdejantes das folhas. Lembravam-me outrossim as condições precárias de minha família e uma nuvem de tristeza envolvia e acobertava o meu céu.
Maio chegou. Com as flores trouxe o sol e sol e flores, vieram-me a par com agradáveis surpresas. Recebi outra missiva da mamãe. Papai fora reintegrado no cargo: não lhe encontraram substituto por mais que o procurassem entre gregos e troianos. A terra era de poucas letras, ninguém se atrevia a lavrar autos. Exultei. Ainda outro motivo de são contentamento: D. Clarinda retribuiu a visita que, no meu e no do tio, lhe fizera, aliás, sem nenhuma credencial para isto, a parte do último. O velho deu pela marosca, mas se limitou me sorrir, a seu sistema.
A palestra ganhara outro rumo, quando o tio propõe mostrar os seus canteiros, de que tinha nobre e legítimo orgulho. Mais do que com zelo, era com amor, com paixão que curava deles, como se a veia paterna de todo homem se lhe decidisse pelas couves, alfaces e repolhos. Sinceramente, não invejei a D. Clarinda esta tarde. Nem a ela, pobre vítima, nem a quem quer quer fosse. Duas vezes, eu e Letícia fizemos menção de nos levantar. Outras tantas retivemo-nos sentados sem coragem para renunciar os aprazíveis momentos de uma palestra a sós, livres da indiscrição importuna de testemunhas. Já no último degrau da escada, perguntaram-nos se íamos gozar a fresca da tarde. Olhamos um para o outro, sorrimos quase nos pusemos de pé, mas havia o que quer que era que nos prendia às cadeiras. Não íamos; e não fomos. Complacente D. Clarinda, benditas alfaces do tio.
Um festão de trepadeiras espiava curioso, por cima do muro; sabiás cismava, ao calor morno da tarde, pousadas nos arames da cerca, ensaiando gorjeios em surdina; cordões de marrecas cortavam o céu, com variados arabescos, em gritos desentoados; o poente esbraseara: uns últimos raios de sol arrastaram-se languidamente pela relva, grimparam, morosos, acima da cajazeira em flor, cintilaram um instante, de ramo em ramo e perderam-se nas névoas do crepúsculo. Das roseiras, em vasos. de barro sobre o peitoril, vinha o suave odor que se desprendia de duas flores vermelhas, tristes, quase murchas, no termo da existência de algumas horas. Tudo convidada à melancolia. E sob a influência de tão dúlcida tristeza, conduzíamos a nossa palestra, feita de nadas, em que numa sílaba se diz muito. e uma palavra traduz todo um hino de sentimentalidade vibrante, cantado dentro da alma. Quando emudecíamos, os olhos falavam por nós, embebidos uns nos outros, confundindo a lassidão das nossas alas em espasmos lânguidos de um amor tépido, balsâmico, gorjeado de suspiros, dentro da suavidade daquela tarde poética e doce.
O alpendre parecia-me outro. A tinta desbotada do frontão da casa semelhava uma aquarela, ao fundo de deslumbrante cenário, onde se fazia uma representação ainda inédita no mundo. Não sei depois de quanto tempo demo-nos conta de que estávamos com as mãos entrelaçadas. E, cada qual a seu turno, muito a furto, que não se revelasse a intenção, as foi separando, num enleio casto e divino, devagarinho, docemente, que o medo da profanação só a custo, conseguia que nos vencêssemos a nós próprios, o prazer indefinido daquele gesto. Por pouco o tio e D. Clarinda no-lo surpreendiam. Viam vindo – a velha desafogada de longo martírio, o tio malhando-lhe a paciência com uns restos de comentário. Ainda assim, teve coragem de afirmar que passara deliciosa tarde Estava contudo apreensiva pela hora avançada. Tomás, o criado da casa, fazia-lhes companhia. Inútil assim o meu oferecimento apesar do mito que o agradeciam. Não insisti. E foram-se.
VI
FOLHA SOLTA
O outro dia, rebuscava papéis velhos, amarelados cujo único préstimo era de fornecerem alimento às traças. foi deles que tirei este capítulo. Guardavam o melhor das minhas recordações. Eram folhs solas de diário, muito em voga entre moços de pouca ocupação e que dizia às maravilhas para escrito no retiro de uma fazenda, à luz de amor nascente. Não pude conservar a feitura original, no desalinho em que o elaborei, tantos anos antes. Mas aqui lhe dou uma passagem, sem sacrifício de nenhuma ideia.
22 de junho
Como de hábito, fiz a minha excursão matinal. A espingarda e o farnel, a tiracolo era quanto de caçador na realidade tinha as todos ajuizariam das aparências e o motivo me ficava no coração. Chegam boatos de suspeita, da parte do tio e da velha. Se tais notícias já vieram até mim, não duvido que estejam inteirados de tudo. Entretanto Letícia não dá mostras do mínimo receio, nas nossas entrevistas diárias, sob a romanzeira do oitão da casa. Também eu não acho de que temer. Ignoro as razões dela. As minhas estão em que tenho deliberado o casamento do tio e da velha. De tanto insistir a cada passo, sobre a necessidade inadiável de ele tomar estado, já consegui do tio uma frase que vale por franca decisão em homem de tão poucas palavras e resguardo total de pensamento: – Devo de fato cogitar nisso. A noiva irei lhe insinuando aos poucas. Letícia há de ajudar-me. Não para vencer qualquer relutância da velha, em quem encontraremos o melhor desejo, mas para emprestar à mãe um pouco de sua beleza e atrativos. Nenhum inconveniente vai, que desempenhe, desde agora, o papel de sobrinha de um tio ricaço. Desvelos, agrados, carícias, como se ela os sabe ter e a velha passará de contrabando, por mercadoria de primeira.
Paremos aqui. Se alguém lesse estas páginas, havia de estranhar que um enamorado se ocupasse de coisas tão práticas e nada condicentes com os devaneios e as ilusões do amor. Nem uma palavra sobre ela, sobre esse idílio que vamos tecendo com as flores mais louçãs do coração, no seio da natureza, sem buscar outro encanto que o de nós mesmos, sem outro brilho que o do sol, sem outro perfume que o das rosas e dos bogaris, debruçando-se dos galhos muito pendidos, no intento talvez de nos espiar felizes. Termina aqui a página amarelada. Perdoem-me por demais romântica...
VII
A VAQUEJADA
A casa do Pedro Maracajã era a meia légua distante. Quando cheguei, já o pátio, convenientemente roçado, coalhava-se de vaqueiros co os gibões e as peneiras ajustadas, tudo num esbatimento de amarelo fosco sem brilho. A latada de folhas, em frente ao casebre, regorjitava de convidados. Até rubis e esmeraldas o Dr. Lopes, obeso e de grande nomeada como médico parteiro, e o Bacharel Marcellos, de monóculo, chapéu coco e só. No mais, perfeita cavalgadura. Tinham vindo da cidade expressamente pela vaquejada, que prometia ser das melhores tendo por si a fama de muitos anos passados. Letícia pouco demorou, acompanhada das manas e do Tomás.
A poder de ferrão, espirrou o primeiro boi, logo encalçado e derrubado. Houve aclamações. Outros se correram, co idênticos efeitos de êxito e entusiasmo.
– O barbatão, o barbatão, – pediram em grita.
Era um bonito espécime. Negro, luzidio as armas curtas, bem servido de anca e peito. De agulhada em punho, dois homens o fustigavam, impelindo-o para fora da porteira. O resto do gado, num entre-bater confuso de chifres, reunia-se no fundo do curral, de encontro à cerca de pau a pique. E frente ao mourão, os cavalos escarvavam o solo, mordendo os freios, empinando, excitados pelos vaqueiros, desejosos de lhes provar a excelência e demonstrar a própria perícia de derrubadores.
O garrote, na porteira, parou ao limiar, percorrido por frêmitos nervosos, que lhe sacolejavam as carnes. Açularam-no com gritos e tomou em desenfreada carreira, desabaladamente. O estrépito de muitos cascos, ao esmo tempo se ouviu. Como se movidos por um mesmo impulso simultâneo, precipitaram-se os cavalos de orelhas murchas, cravados dos acicates, fustigados dos açoites, acudindo a direção das rédeas, no encalço do fugitivo. Os montadores em derreio sobre a cela, a meio corpo pendidos chocavam-se e era uma dezena de braços estirados a mais não poder no esforço inútil de alcançar a cauda do barbatão. Um mugido de triunfo reboou ao longe. Era a nota do desafio, tão conhecida dos velhos que, em grupo, suspiravam saudosos: – O nosso tempo! No meu cavalo pedrês, disse um dos mais enrugados, nunca botei boi no mato. E balançando desconsolado a cabeça alvíssima: – Hoje é assim, não se importam de fazer feio.
A dois e dois, voltavam os vaqueiros e havia cavalos que manquejavam Não sei se lhes chegou a fala do ancião. Um deles abalou, impetuosamente, entre brados de entusiasmo. Rompeu o mato, cosendo-se.ao selim, os jarretes terrivelmente fincados, com duas fitas de sangue pela barriga abaixo do animal. Todos estavam em ansiosa expectativa Ouvia-se o estralejar dos galhos, o arruído surdo da arrancada, pelos fundões e em uma ou outra clareira, divisavam-se dois vultos, cada vez menos distantes, cada vez mais perceptíveis, quando o garrote, saindo bem à vista, perseguido de perto, caiu, rolando duas vezes sobre si mesmo.
– Queda de mestre! Este já sabe o que é pegar em cauda de bicho.
E foi delirantemente aplaudido, o melhor feito do dia. A vaquejada prolongou-se até a tarde, com entusiasmo crescente dos corredores, apostados rivais conquistando aplausos com risco da mesma vida. Demos a última demão aos preparativos da saída.
O tio estava ao nosso lado, numa estudada surpresa. Cortejou as moças, deu-me a metade de um sorriso amarelo e abriu a marcha, bralhando no seu soberbo alazão. Propositalmente deixei-me ficar para trás.
Esfolavam já o novilho da matutagem. A praxe do encerramento consistia sempre nisto: corria-se o mais belo anima do bando e, ao derrubarem-no, quebravam-lhe uma das pernas, sem o que não havia matá-lo. Daí o esforço dos vaqueiros, dos peritos neste particular, que, diga-se de passagem, raramente perdiam o ensejo da ótima ceia. A tarde baixara de todo, quando alcancei o grupo do tio e das três moças.
O velho ao lado de Letícia, tinha no semblante vagos reflexos de grande satisfação e nunca lhe notei ar de tanta audácia nas guias caídas do bigode murcho. Sorri por dentro, mandei uma piscadela à pequena e toei o lado das outras duas. Provavam excelentemente os nossos planos. E, atendendo-lhes a reclamação, meus indulgentíssimos leitores: A mais velha responde por Nanu. Vestígios de beleza precocemente eclipsada. Riso com muito de esgar, refletindo mágoa recôndita de um desgosto incurável. No meio da mais animada conversação, cai de repente numa mudez de que não há arrancá-la, abstraída, perdendo-se em cogitações penosas, com expressão de amargura pungente. Dá que pensar nas cãs do velho pai, vilmente desrespeitadas. A do meio, em singular contraste: alegre, jovial, abrindo-se num riso franco e comunicativo, invariavelmente sem se sentir de nenhuma influência estranha, no seu caráter folgaz. E temo-las apresentadas, as irmãs de Letícia.
