MR. SEVER INE – Santino Gomes de Matos
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 6 de fev. de 2024
- 15 min de leitura
Atualizado: 7 de fev. de 2024
– Moço, a passagem!
Severino Correia, que cochilava, abre os olhos, estremunhado. E não encontrando logo o bilhete, depois de vasculhar os bolsos, atrapalhadamente, vexa-se, apreensivo.
O chefe de trem observa-o com o olhar regalado de um humor vivaz, como se a cena o divertisse. As feições lhe retomam, porém, o aspecto naturalmente severo, ajustando-se à sombra dos óculos escuros e das rugas antipáticas pelo rosto inteiro.
– Vamos, moço! Se quer emmbromar, é trabalho perdido.
Levanta a cabeça, um tanto atrevidamente, mas nenhuma palavra lhe acompanha o gesto arrependido de revide às expressões ríspidas do homem de boné.
– Era o que faltava! resmunga contrariado.
Parte dos passageiros levanta uma ponta de curiosidade, em face do incidente que veio quebrar tão de golpe a monotonia dos cochilos, dos bocejos, dos espreguiçamentos de fadiga na viagem arrastada de lentidão. Trinta quilômetros horários! E a cada passo uma estaçãozinha, um posto de parada aqui e ali, para o embarque de canecões de leite, de sacas de arroz e de feijão, ou de enormes cestas de verduras.
Tem uma reação de rosto afogueado à convergência dos olhares sobre sua pessoa. Até mesmo aquele senhor de aspecto vago e distante, que lia um jornal, superiormente abstraído, condescende em descer até o pequeno escândalo em perspectiva. Ainda bem que no mesmo instante se ouviram apitos alarmados da máquina, ao transpor uma ponte. O trem relentou ainda mais a marchinha cabulosa. E todas as cabeças se precipitaram para as janelinhas do vagão, a fim de acompanhar com ansiedade as tentativas de um grupo de pessoas a empurrarem um automóvel parado bem no meio da linha. Conseguiriam remover o veículo um minuto antes da chegada da composição, sem estragar, portanto, o suspense dos passageiros, até o último momento: pega, não pega; pega, não pega; pega... Não pegou. Nesse ínterim, já encontrara o raio do bilhete. Mas esperou que cada qual voltasse a se sentar, que cessassem um pouco os comentários do incidente lá fora, sem dúvida muito mais excitante. E foi com um "tome lá" forte e áspero, ecoando por todo vagão, que estendeu ao chefe de trem a passagem exigida.
Era sempre assim. Não sabia valer-se do "desconhecido na multidão" para passar despercebido em qualquer circunstância, principalmente as difíceis e vexatórias. Portava-se como se tivesse um letreiro na testa, com o nome por extenso, e através dele todas as indicações acerca da própria pessoa. Severino Correia, professor por necessidade de vida, sem carteira de registro, nem qualquer curso de licenciamento, fôra colocado em dúvida quanto à sua lisura moral, confundido com um golpista, capaz de viajar num trem sem a massagem competente.
Dá-lhe vontade de se levantar e falar a todo o carro de primeira contra a injustiça da suspeita a um moço digno e honesto. Pois lhe vissem os atestados de boa conduta, do delegado de polícia, do prefeito, do juiz de direito, do padrinho vigário. Não queriam que saísse, desfalcando a cidadezinha interiorana do único professor capaz de uma regra de três composta e do "quosque tandem" de Cíccero. Português? Nem se falasse! Virava do avesso a gramática de Carlos Pereira, com definições e regras na ponta da língua, além de saber de cor algumas estrofes de Os Lusíadas.
O problema era o inglês. O professor que lhe dera aulas no Seminário onde estudara, por conta da Obra das Vocações, mandara fazer uma dentadura, especialmente, para a pronúncia do th fraco e forte. Mas havia momentos de largada fraqueza em q ue o velho Monsenhor confessava a sua filiação cultural e didática ao "Inglês Sem Mestre" de Bensabat. Por isso não tinha confiança nos conhecimentos da língua de Milton adquiridos no Seminário. Gostou da perífrase: língua de Milton. Deveria servir-se dela na primeira oportunidade de "épater". Porque já não podia recuar, dada a precipitação dos fatos.
– Como é? Aceita ou não aceita a proposta do diretor do "Laus Domini"? O diretor é pessoa de velha amizade, foi meu contemporâneo no colégio, embora dois anos abaixo de mim, por causa de uma obtusidade congênita para as matemáticas além das frações ordinárias. Não completou nenhum curso, sinal evidente da vocação do magistério, como é o seu caso e tantos outros que arrepiaram na carreira eclesiástica. Ai do magistério nacional, nos domínios do ensino médios, se não fossem as frustrações vocacionais que produzem centenas de ex-seminaristas.
Ao relembrar as palavras do dr. Possidônio, a quem entregara duas cartas de empenho, acompanhadas de um requeijão e de uma garrafa de pinga especial, não soubera ao certo, por mais que esforçasse o bestunto, se o velho advogado, podre de rico, no hall do luxuoso palacete em
Copacabana, tomara pretexto da quarta visita do seu recomendado do interior, para o exercício de ironias sem consequência, só pelo prazer de se sentir espicaçantes e mordas. Ou falaria mesmo a sério, com aquela voz mansa, disciplinada num tom igual e monótono, sem variações cromáticas, sem relevos de sentimento ou emoção, como quem tivesse a personalidade em conserva, e a servisse em fatias iguais, rigorosamente dosadas nos gestos e nas expressões, para uso externo.
"Ai do magistério nacional nos domínios do ensino médio se não fossem as frustrações vocacionais que produzem centenas de ex-seminaristas!" Sim, a frase era essa, textual. Decorara certinho, apesar da perturbação pelo proposta do dr. Posidônio que deixara de aceitar imediatamente. Precisava pensar.
Fosse como fosse, o velho se interessara pelo recomendado. Tinha vários amigos donos de ginásios, e pleiteara para o jovem Severino Correia, ex-seminarista, talentoso e culto, uma vaga qualquer no corpo docente de qualquer estabelecimento, para ensinar qualquer matéria. Não se podia deixar por menos a generalidade.
O caso era mesmo de urgência urgentíssima, nas aperturas do espaço vital, para não dormir ao relento, e de uma refeição por dia, para enganar um estômago voraz de vinte e dois anos. Repartia com um colega de infortúnio os quatro metros quadrados de um cubículo num porão, onde se encaixotava à noite, dormindo sem ar e sem esperanças sobre um velho colchão apodrecido. Madrugava no banho de mar, sempre numa praia distante, onde pudesse lavar a roupa branca que depois passava a ferro, às escondidas, furtando energia e fazendo prodígios com o ferrinho que usava, minúsculo, quase de brinquedo.
Quanto tempo aguentaria aquela situação? Já escasseava até mesmo o dinheirinho do almoço no China. Lembravam-lhe as asperidades do outro dos seus supostos protetores no grande Centro, por obra das cartas de recomendação. Talvez porque não houvesse requeijão nem pinga velha valorizando as letras pedintes, o tabelião Teodomiro, com cartório na Rua do Rosário, acolheu-o de má sombra. E ainda mais se azedou, depois de se inteirar de que lá na terrinha distante morrera o Quincota do açougue; que João Binga não fazia mais bolo de chapéu, para venda diária, de porta em porta; que o sino grande da Matriz deixara de dobrar a defuntos; que em vez do rio cheio atravessado a nados potentes e heroicos, como ele fizera outrora em companheiradas divertidas, havia agora uma ponte, por onde se passava covardemente, escarnecendo das águas mugidoras lá embaixo.
O tabelião Teodomiro encontrou nesses fatos a descaracterização completa de sua saudade da terra natal, e daí tirou uma força de rabugem implicante e agressiva, no comentário à carta de apresentação:
– Pois é, seu Laurênio...
– Desculpe, Severino Correia.
– Pois é, seu Severino Correia, por conta irrespponsável e temerária do meu querido e gozadíssimo Laurênio. Ora, há quantos anos: Como vai ele? Naõ diga nada. Eu mesmo respondo: morto e sepultado na vidinha provinciana. E olhe que a carta não veio mal redigida, não senhor. Tem os pronomes no lugar, e um anacoluto muito bem trabalhado. O homem deve andar em dia com o seu Herculano, com o seu Camilo, e isso não é coisa de pouco preço. O que existe por aí, em barda, são os achavascadores do idioma. Está entendendo, seu...
– Severino.
–... seu Severino? Em barda, achavascadores, quem hoje compreende a linguagem de coturno alto? O senhor... Bem, foi seminarista, passou os conhecimentos da "última flor do Lácio" pelo crivo do latim. Tem de que orgulhar-se no meio dos capadócios de algaravia, dos moedeiros falsos da gíra. E se dizem modernos, inovadores, avançados,"pra frente", quando nada mais são do que uasininamente ignorantes. Asinainamemnte ignorantes!" O diabo é que o Laurênio encontro a sua melhor sintaxe, de gente que se preza, para nos meter a mim e ao sr. num beco sem saída. Isso aqui, seu Severino, em matéria de arranjar emptrego é uma tarefa de S´sifo, ou como diz o povaréu ignoro, "fogo na roupa". Não que desanimá-lo, não senhor. "Libera me domine". Mas fiz tudo para lhe arranjar nem qu e fosse um lugar de sacristão, como tanto convinha a um ex-seminarista. Soube ontem que se aposentara o da Igreja de São Francisco Xavier. Corri ao vigário, meu velho amito de tantos préstimos, e encontrei-o a debater-se no meio de cinco bacharéis, que exibiam respeitabilidade de canudos e de latim macarrônico, em disputa às migalhas lucrativas de acendedor de velas e de badalador de sinos!
Afagou pela décima vez uma verruga viçosa do lado esquerdo do nariz e continuou:
– Não disse que tinha uma velha escolinha lá em nossa velha terra, comovedoramente analfabeta? Seu Severino, volte à sua meninada, tão necessitada do bê-a-bá. Capacite-se, meu amigo, da maior benemerência em desasnar crianças do qu e ser técnico da educação˜no Brasil. Enche-se a boca com a designação pomposa: técnico da Educação. Entretant, há cada um deles! Francamente, incidem no domínio da pilhéria. Uma pilhéria de bom gosto, que se veste na alta costura, e tem honras de saão. dáse ares de grande dama, mas, de vez em quando, lá aparecem os calções à fantasia do picadiero de circo. Volte, meu amigo. Afinial de contas, vale mais a pena ir à frente do prpogresso de uma comunidade, mesmo pequenina e modesta, ensinando-a a ler e escrever, do que em segurar a cauda suja da civilização na Capital, como acompanhante das sarjetas. Volte, meu amigo, e diga ao Laurênio que ele está multado num beiju de coco e em dois quilos de doce de caju.
Despedira-se do tabelião sem saber separar dos sentimentos misturas o que mais o dominava, irritantemente. Decepção, revolta, amargura, desânimo. Tomou como uma sugestão à covardia o conselho de que devia voltar. Nunca! Preferia sumir no mundo, sem dar mais notícias a ninguém, como se tivesse morrido, a passar pela vergonha da derrota perante os que tanti fiaram no seu valor.
"É uma perda para a cidade. Mas, você, menino, com o talento q ue tem, vai tomar o Rio de Janeiro de assalto." Beijou a mão do padrinho vigiário com redobrado fervor. Ao lhe ouvir as palavras proféticas que toda a freguesia repetiu, depois, e cheia de simpatias augurais.
Afinal de contas, não era um qualquer, mas o professor Severino Correia, que trazia o compromisso de triunfo de uma população inteira, a nele se rever em predicados rutilantes de inteligência e cultura. E o motivo particularmente efetivo da mãe viúva e pobre, mais a irmã, passando aperturas de vida, com as esperanças maiores e menores concentradas no futuro Padre Severino Correia, que infelizmente gorara! Três anos ainda havia durado o entusiasmo místico de se fazer sacerdote. Um belo dia entrou em si, com sonda psicológica mais profunda, e medu a responsabilidade para uma resolução definitiva. Compreendia o sacrifício enorme da mãe. Não era justo que a trouxesse mais tempo enganada, a trablahar como uma negra cativa, só com o pensamento de um dia vê-lo cantar missa. A confissão de que ia deixar o seminário, embora os recursos diplomáticos de que usou, magoara-a profundamente. Era o total desabamento dos castelos que erguia sobre a desdita de viúva sem recursos, desamparada.
A princípio não se conformou. Chegou mesmo a um assomo de revolta. Juntou as derradeiras reservas de má energia depauperada e disse que o obrigaria à batina, que ele estava muito enganado, um rapazinho ainda sem barba na cara – ia pelos vinte anos – a querer deliberar, senhor de si e do mundo. Logo depois, no entanto, sumiu o resto nas mãos e chorou como talvez nunca chorara em toda a vida, sem resistência, aniquilada do inteiro desalento.
A escolinha fora lembrança dela, quando voltou para casa sem ter o q ue fazer. E mesmo diante do rendimento magríssimo, com os vinténs contados das mensalidades de trinta e poucos alunos, não queria a separação.
– Mamãe, a sra, vai ver. O meu futuro está lá fora. Aqui marcarei passo a vida toda. A sra. vai ver como se u filho será um grande homem.
– Sei lá. com a desgraça de mundo que você vai enfrentar, só mesmo a misiricórdia de Deus. Como já disse, por mim, não iria. Boa romaria fazm quem em casa fica em paz. Mas depois poderia alegar: se não˜fosse mamãe, eisso e mais aquilo =, e mundos e fundos. É melhor que vá. Sei lá... Se seu pai fosse vivo.
Foi ver o retrado do pai na sala de visitas. Impressionou-o o olhar severo da fotografia, que parecia fitá-lo com um jeito de repreensão. Seria qe o pai também desaprovava a viagem, ou tudo não passava de projeções de si mesmo, supersticiosamente? Debalde procurou descobrir na fisionomia grave, sob a cortina murcha dos bigodes caídos, um traço de benevolência. E o olhar duro, severo, seguia-o sempre, quando se afastou de costas, respeitoso e amedrontado.
Todas essas recordações, com vincos fortes no seu espírito, no curso da aventura temerária que estava vivendo, o tinham salteado, diante da crueldade das expressões do tabelição TEodomiro, que em lugar de aceno de animação, ligeiro que fosse, como uma aragem num abafamento de asfixia, procurara tornar ainda mais rarefeita a atmosfera irrespirável. O pior é que o velho notário, com as suas frases hirtas de pernosticismo, com as suas asperidades e a sua verruga lustrosa, estava coberto de razão, quando pintava de cores desenganadamente negras a situação do "infortunado patrício".
– Volte, seu Severino, volte à sua meninada...
Voutou, mas foi à casa do dr. Possidônio, para aceitar a cadeira de inglês no ginásio "Laus Domini", em Carapuã. Nunca ouvira falar antes em semelhante cidade, para onde agora ia carregado aos sacolejos naquela bitolinha estreita, e cheio de preocupações atrozes. Revelara ao dr. Possidônio a precariedade dos conhecimentos da matéria que ia lecionar pela primeira vez.
– Basta que você saiba dizer "I love you" e "time is money", está amplamente habilitado.
Mais uma tirada de ironia do dr. Possidônio, ou se referia ao acanhado nível cultural de Carapuã, onde talvez ninguém entendesse níquel de inglês? Daí a encomenda de um professor feita para a capital. Severino Correia animou-se um pouco com essa suposição.
Passou a dar um balanço no vocabulário aprendido, e também em frases e locuções que exumava do funda da memória, com um esforço até certo onto rendoso. "Five of the sweetest words in English begin with h: home, hope, happiness, heart and heaven." Era da "Estrada Suave", o livro adotado em classe. Conservaria o trecho de cor para o resto da vida, de tanto ouvi-lo repetir pelo velho mestre, que dava ao h aspirado um sopro cansado de dispneia. E zangava-se quando alguém traduzia a curiosidade literária que era o seu carro-chefe na semostração erudita. Não tinha sentido, perdia todo o encantamento do achado com h: lar, esperança, felicidade, coração e céu. Ao menos para salvar a lógica, impiedosamente trucidada, que se alinhassem os vocábulos ingleses depois dos dois-pontos: home, hope, happiness, heart and heaven. Mas pçorque não dizer tudo no idioma de Shakespeare? "Five of the sweetest words..."
Afastada a lembrança divertida, e volta a mergulhar no seu drama, lamentando não ter aprendido inglês, se não tanto como português e latim, ao menos o suficiente para atender àquela oportunidade de professor do "Laus Domini", que se transformava em aflitiva emergência. Com certeza, por falta de aplicação, não chegara a distinguir bem o th brando do th forte, embora o esforço do mestre, meticulosíssimo, armado de uma dentadura nova, ad-hoc. Arrependia-se, já muito tarde, das brincadeiras na classe, disperso de atenção e vazio de interesse, só aplicado em arremedar a fala e os gestos do Monsenhor, que, a qualquer pretexto, repetia, cansativamente, exaustivamente: "Five of the..."
No recreio, fazia-se roda de ouvintes, perante os quais exibia os dotes de imitação vocal.
– Outra vez, Severino!
_ Five of the sweetest words...
E eram gargalhadas a valer, por conta da mania do velho professor, que Deus já chamara à mansão dos justos.
Ainda tinha uma hora de viagem até Carapuã, segundo lhe informara o vendedor de pastéis. E no hábito de ruminar os acontecimentos, misturando coisas novas com coisas velhas, numa revista interior minuciosa, nem lera ainda a carta do diretor do "Laus Domini", que o dr. Possidônio lhe entregara no mesmo instante da despedida, protetor solícito, mas decidido e enérgico, como um diretor de cena que não admite réplica.
– Vai direto para a estaçãõ, que o caso é de urgência. O telefonema ao Glláucioi já foi dado. No rem você lerá a carta que ele me escreveu, urgindo a sua ida, e ficará ciente das condições que lhe oferece. Um maná caído do céu, nas circunstâncias em que você se encontra...
– Mas...
– E o dinheiro da passagem?
– Providenciarei tudo. Aqui está o bilhete para o trem das dez, e mais uns trocados para o restuarante. Olhe que faltam quarenta minutos. Meu chofer vai levá-lo. É apanhar a mala e seguir. Até logo, e seja feliz! Um maná caído do céu seu Severino, nas circunstâncias em que se encontra.
Recosta-se melhor na poltrona, para ler a carta do diretor do "Laus Domini". Um maná caído do céu, tinha dito o dr. Possidônio, e isto o predispõe agradavelmente. Poucas linhas. Estilo quase telegráfico, direto, seco, explosivo. O último adjetivo corre por conta da surpresa assombrada que o empolga. O efeito era de uma bomba, sem nenhum exagero hiperbólico.
A carta dizia assim: "Possidônio, ciente das informações sobre Mr. Serv Ine. Mande-o imediatamente. Terá casa, comida e quinhentos por mês. Preciso dar uma lição a certo petulante que me faz exigências insuportáveis. Julga-se insubstituível, porque diplomado pelo Instituto Brasil-Estados Unidos. Não contava que o "Laus Domini" mandasse vir um professor da Guanabara, a capital cultural do país. O pretensioso vai deixar a cidade, e precisa ver com os próprios olhos que providenciamos um substituto muitos graus acima dele. Faça vir Mr. Server Ine imediatamente, e avise por telefone. Sempre seu, Gláucio."
Palpa-se todo, para se reconhecer em Mr. Serve Ine, professor vindo da capital cultural do páis, a fim de quebrar a castanha da petulâñcia de um diplomado do Instituto Brasil-Estados Unidos, em Carapuã. Sim, é ele, que bastava saber "I love you" e "time is money", quem irá sobrepujar uma competência comprovada, em termos de paralelo.
Sem dúvida, o sr. Possidônio, por quem já se toma de um ódio corrosivo, de vitríolo, enaltecera no recomendado, Mr. Sever Ine, predicados superiores de um graduado de Oxford. Agora compreendia porque precipitara tudo, depois de apaziguar-lhe os escrúpulos de mau sabedor de inglês. Queria era ver-se livre do importuno, despachando-o de qualquer forma para as lonjuras de Carapuã.
Ainda que atirado às feras, para ser literalmente estraçalhado. Era a desmoralização. Era o fim de tudo. Nunca mais se aprumaria: Maldade, inaudita maldade, sob as aparências de proteção desvelada. "Um maná caído do céu". Antes a rudeza lixa zero do tabelião Teodomiro: "Volte, seu Severino, volte à sua meninada". Sim, o que tem de fazer é voltar.
Dá um publo da poltrona, como se fosse mandar parar o trem. Descerá na primeira estação e ganhará rumo ignorado, trocando de nome, aceitando qualquer espécie de trabalho, até que novamente se erga, com o seu protuguês, o seu latim, a sua matemática de juros e de regra de três composta.
Engolfa-se novamente no sestro psíquico de remoer palavras em eco, de repassar em filme de longa metragem, introspectivamente, os fatos e as pessoas. Tinha razão a mãe aflita e chorosa: "boa romaria faz quem em casa fica em paz". E o olhar que lhe caíra do retrato do pai, naquela despedida muda, cheia da sugestão do mistério, quando buscava ver aprovada a sua decisão de partir. Olhar sem benevolência, severo, cheio de previsões negativas. Devia ter atendido ao que no Seminário lhe censuravam como maluqueiras de visionárioi, e que cada vez mais acreditava ser um entendimento dek advertências secretas, inex´plciáveis, mas verdadçeiras.
O trem parou. Toma da mala e dirige-se à saída, para o salto no desconhecido. Só depois de ter apeado, tal a perturbação interior, é que verifica que não se trata de estação. A locomotiva reabastecia-se numa caixa d'água. Volta ao seu lugar no vagão. Sente-se aliviado pelo adiamento imprevisto da decisão extrema. E logo segue uma nova ordem de pensamentos, como quem quisesse desandar passos definitivos num caminho fatal. Pois bem podia ser em Carapuã Mr. Server Ine, com toda a importância que o dr. Possidônio lhe atribuíra, quem sabe se com lisa intenção de ajuda?
Estivera talvez fazendo um julgamento injusto, porque sempre se descontrolava, assumindo posições radicais de oito ou oitenta, nas conjunturas assoberbantes. O dr. Possidônio, depois de resgatar o jovem conterrâneo da humilhação do porão e do frege-moscas, buscara projetá-lo em altura. E ele, em vez de corresponder a essa intenção, ficava se marcar com a negação de um zero, estupidamente pessimista! Era ou não era um moço de preparo? E inteligente, e capaz de todo o esforço para conquistar e vencer? O dr. Possidônio oferecera-lhe a oportunidade de altura, pois ali estava, passageiro de primeira clase e promovida a Mr. Sever Ine. No entanto, deixava de segurar o topete da fortuna...
Entretanto, como fazer o th forte e o th fraco, verdadeira obsessão no reconhecimento das falhas da pronúncia inglesa, quase sem nenhum sotaque? Ora, inovações da capital cultural do país! Não, não tinha jeito para desenvolturas cínicas. Não sabia fingir sem trair-se, sem sentir chegar-lhe às orelhas um escandaloso fogo denunciador, que as punha mais vermelhas que camarões. Bastava um tropeço nas palavras da verdade, mesmo qpor enganos involuntários. Mas precisava, porventura, explicar alguma coisa? O que Mr. Sever Ine dissesse estava dito, e pronto. Qual o quê!
Não obstante, o diplomado do Instituto Brasil-Estados Unidos sem dúvida deixara bom lastro de conhecimentos nos alunos, habilitados a denunciar as deficiências grandes do novo professor. Não havia outro recurso senão descer na primeira estaçãõ, e fosse o que Deus quisesse!
O trem parou? Olha pela janelinha e lê surpreso e apavorado: Carapuã. Ninguém se movimenta no carro. Nenhum passageiro vai descer. Também fica no seu lugar. Uma estação antes ou estação depois, pouco importa nos azares de um destino incerto. Mas o chefe de trem lhe para ao lado da poltrona: – Carapuã!
E ao entregar o bilhete, várias pessoas que haviam invadido o caro se lhe dirigem, efusivamente: "Seja bem-vindo, Mr.a Sever Ine! Seja bem-vindo!" Cumprimentado e abraçado, é no meio do grupo que se dirige para fora do trem. na gare, uma pequena multidão se aglomera. Saúdam-no com palmas, quando o diretor do "Laus Domini" o apresenta, tomando-o cordialmente pelo braço: Mr. Sever Ine!
Apesar de inteiramente confuso, como se apanhado num turbilhão, lê numa faixa que duas moças empunham: "Welcome Mr. Sever Ine". Fazem-no parar a pouca distância do ajuntamento de recepcionistas. Um mocinho se destaca do grupo e pronúncia em inglês um discurso de saudação. zumbem-lhe os ouvidos, num aturdimento de tontura. Entende mal, quase nada. E quer prolongar, indefinidamente, o abraço de agradecimento ao orador. Mas já se cava, depois das palmas, um silêncio expectante, profundo, soleníssimo. Todos os olhares se fixam em Mr. Sever Ine, zonzo e lívido, mais morto do que vivo. Os segundos da perplexidade lhe parecem uma eternidade inteira.
De repente, porém, reanima-se, a fisionomia se lhe aclara como numa iluminação de milagre. E avançando um passo: "Thamk you! Thank you! Five of the sweetest words in English begin with h: home, hope, happiness, heart and heaven. An they all wait for me in Carapukã. Thank you! Tnahk you! Time is money."
Os aplausos comandados pelo diretor do "Laus Domini" romperam imensos, prolongadíssimos. Síntese admirável. Puro estilo britânico. Tinha realmente nascido Mr. Sever Ine.
