O SONHO DO TIRANO – Santino Gomes de Matos
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 11 de out. de 2022
- 2 min de leitura
Atualizado: 26 de jan. de 2024
(Na Grande Guerra)
Aquele instante
caiu para a alma deserta do tirano,
como uma nesga macia de azul
do céu primaveril.
E vozes distantes acordaram dentro dele,
em harmonias,
corrigindo os ângulos duros do seu espírito,
para a penetração de uma suavidade misteriosa,
que lhe abria clareiras purificadas,
em todo o ser.
E o tirano viu que as suas estradas
novamente se enfeitavam de auroras e de ninhos.
Que o ar da manhã se reconciliava com seu perfil hierático
e lhe trazia,
a modo de um convite de volúpias perdidas,
o hálito fragrante dos vergéis em flor.
Um quadro de bucólica fotografou-se-lhe na retina,
com as paisagens do trabalho feliz,
nos campos fartos.
Os ouvidos se lhe encheram das cantigas ingênuas
de pássaros despertados e de camponesas coradas
às tintas da manhã.
Por toda a parte,
os motivos simples dos destinos humanos,
selados de um grande selo de paz nos corações,
como um penhor de certezas muito claras,
no presente e no futuro.
Então a alma do tirano, miraculosamente,
se libertou da armadura de ferro.
Adquiriu a leveza das asas vadias,
nos espaços livres.
E a vida do céu, e a vida da terra, e a vida dos homens,
pareceram-lhe uma dádiva sua,
para um capítulo da felicidade universal.
Os olhos se lhe embaciaram de velhas lágrimas esquecidas.
Mas, através da névoa de ternura irreprimível,
que lhe subia do coração aos olhos,
ele viu, de repente, que os pássaros gentis
se transformavam em gigantescas aves de alumínio.
Que um chão de crateras substituía, por toda a parte,
a pelúcia ondulante das searas frescas.
E, de milhares de bocas retorcidas,
e, de milhares de peitos oprimidos,
vinha o mesmo gemido imenso de angústia,
aterradoramente escura e sem remédio.
O céu fundia-se num sudário lutuoso de trevas opacas.
Um vento pressago de destruição e de morte
corria para ele, desdobrando a bandeira vermelha dos incêndios.
Novamente gelou-se a alma do tirano,
no granito impenetrável da sua dureza.
Mas, na transparência do sonho que nunca mais lhe voltou,
ele pôde compreender, aterrado,
a sua verdadeira obra de maldição e de sangue,
para os capítulos mais terríveis da desgraça universal.
Do livro Procissão de Encontros
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