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OLHOS MORTOS DENTRO DA TARDE – Santino Gomes de Matos

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 11 de out. de 2022
  • 2 min de leitura

Atualizado: 23 de abr.

Houve um beco

um tropel de alarme e de tumulto.

Por que levam Leocádia quase a correr?

Um soluço cansado,

que arrefece e se quebra em queixas intermitentes,

persegue o caixão branco e azul,

azul e branco, branco e azul, azul...

Cores de virgindade,

cores dos destinos sós e puros,

pois Leocádia, morta e virgem,

aparecerá estrela no engaste azul do firmamento.

Não. Ela não conhecia Bilac.

Era simples,

da simpleza evangélica do seu quarteirão iletrado.

Mas tinha um coração com instintos de amor,

uns lábios que afloravam em beijos esperados,

uma alma de espuma de sonhos,

rimando com o arminho alvíssimo dos bogaris do quintal.

A morte não entrava nos planos de vida de Leocádia.

No entanto, emboscou-se no fundo deles

e não tardou o bote armado da tuberculosa galopante.

Por que vão abertos, dentro da tarde quente e linda,

os olhos indizíveis de Leocádia?

A que mundos de altura pretendem

com um misticismo vidrado?

Os olhos de Leocádia alarmam a estrela Vésper,

na assombrada estagnação.

Olhos de virtuosidades cegas,

charco imóvel de belezas traídas.

Talvez lhe fosse o último gesto da alma derrotada,

ao ser expulsa tão cedo:

– Doutor, não me deixe morrer!

E à mãe, ao pai, aos irmãos, aos parentes e amigos,

era a mesma cantiga, instante, dolorosa,

cada vez mais fraca,

cada vez mais flébil,

até o trespasse sutil,

como o sono vesperal de um passarinho.

Leocádia, num exaspero de desarmonia,

entrou a tarde de caixão aberto,

com os olhos coalhados de estupor,

exorbitando das pálpebras protetoras,

que deviam recatá-los em apagada placidez.

E o cortejo que conduz o esquife azul e branco,

com pressa de tropelada,

tem a intuição pânica do repouso desses olhos,

no repouso escuro da terra,

para que não se multipliquem em dor e espanto.

Mais espanto do que dor,

ondeando, estranhos, por toda a parte,

perdidos na vultuosidade cega de si mesmos,

contra a doçura do céu de mantilhas finas,

contra o arabesco das andorinhas,

de torre em torre,

coreografando o choro manso dos sinos

que repicam por Leocádia morta e virgem.


Do livro Céu Deposto

©2023 – Todos os direitos reservados. Permitida a divulgação, desde que citada a autoria.

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