RECRUTA CEARENSE – Santino Gomes de Matos
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 12 de out. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 16 de abr.
À glória imortal de Antônio Sales, o maior poeta do Ceará.
Luto de galhos nus na mataria seca.
E o grito-choro dos pássaros azuis
e um voo rasteiro de marreca,
que busca, em vão, o lodo dos pauis.
Só as copas redondas dos joazeiroos
são, no alto, um oásis de verdor.
E abutres carniceiros,
entre as folhas de espinho,
espreitam, vivamente, o triste error
dos espantalhos-vivos
que se arrastam na faixa do caminho.
A bem dizer, o vento é que os conduz,
na incerteza dos passos tropicastes,
famintos, seminus,
– o quadro secular dos emigrantes.
E a pobre gente avança,
curvada para o chão, como s os ombros lassos
já nem pudessem mais com o peso dos braços...
E a fila negra vai,
como fantoches em macabra dança.
II
Um carcará rasgou a sua risada.
E em estalos de mágoa,
racharam-se as forquilhas da latada
que fora outrora a sombra, o pouso, o pote d'água.
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Foi quando ele avistou o espetro do casebre.
Não podia andar mais.
Tinha os pés em sangue, o peso de uma arroba
e a cabeça incendiada, e a língua em febre
e, no estômago vazio,
os dentes acerados de uma loba.
Mil contas de suor espesso e frio
entorroavam-lhe a face cor de lodo,
onde a morte já vinha
espichar-lhe uma máscara amarela,
com o seu orgulho todo
de princesa ou de rainha,
que requer sempre as honras de uma vela.
E a custo foi levando os passos epiléticos
à latada de palha...
O sol, no alto, com cara de morfético,
acendia-se em boca de fornalha.
III
Uma curva na estrada
e u vento mau, que foi levando os rastos
mal impressos na areia requeimada.
Naquela curva viu o pobre flagelado
sumirem-se, afinal, os últimos andrajos
e os últimos olhares.
Em redemoinho, o vento agora levantado,
afunilou-se em espirais tão loucas
que parecia a boca de mil bocas,
num bocejo de fome para os céus.
E a poeira formou extensos mares
e tudo se cobriu de densos véus,
como se a terra, alucinadamente,
procurasse apagar a brasa enorme
do sol onipotente.
IV
O delírio o tomou.
É vigília talvez, ou talvez dorme,
junto à forquilha podre em que tombou.
Tem no cérebro o enxame alvoroçado
de milhões e milhões de vespas zumbidoras.
O estômago esfomeado
sente sério trabalho de tesouras,
de lâminas e pontas e tenazes,
em repuxões de antrazes.
Talvez por outra, de sob a massa espessa
que lhe obumbra a razão,
surge uma ideia tonta,
zonando na cabeça,
sem nexo, sem razão.
V
No crepúsculo da vida que se esvai,
do moribundo a mente
ora é um pano de boca, negro, negro,
que sobre o ser, tetricamente,
pesadamente, cai.
Todo o passado é um monte de carvão,
enchendo o campo vago da memória.
E o presente ainda menos que a noção
da treva para a treva,
ainda menos que a história
de um eco que a outro eco se transmite
ou de sombra que a outra sombra fite.
Ora, porém, a mente é um campo iluminado
de luz vivíssima e tão clara,
que as imagens de vida do passado
vão prolongando a vida agonizante
e suspendendo a noite horripilante
que a morte já baixara.
VI
E ele reviu a existência inteira.
Na infância, enfezadinho, amarelo, chupado,
armando visgo aos sanhaços.
mas, aos sete anos, já a trabalhar na eira,
a ir dar ração às vacas e ao capado
e a sopesar, com o graveto dos braços,
a lenha da aroeira.
Roubaram-lhe bem cedo as calças curtas,
a arapuca e o bodoque.
E de manhã à noite, na labuta,
nem teve tempo de sonhar com a Vida,
que a Vida o exigia para a luta,
escancarando-lhe à alma estarrecida
uma boca de Moloch.
Possuía mil senhores que o mandavam.
O patrão, a patroa, os filhos todos.
Pelo nome, sequer, não he chamavam.
Como um lodo mais vil que os outros lodos,
era o enjeitado o pulha, o grande besta...
E choviam desprezos e maltratos.,,
E a sua alma era assim como uma cesta
tecida de cipós,
que conservasse sempre o aroma bom dos matos,
permitindo escapar
pela rude juntura dos seus nós,
a guerra má de espinhos aguçados
que de todos os lados
se lhe vinham frechar.
VII
Já homem feito, exímio vaqueano,
pôde, afinal, plantar o seu roçado.
Ele mesmo, sozinho, o tinha encoivarado.
Há muito que o alazão de um grande plano
o transportava, lépido ao futuro.
Uma casinha, um lar tão pequenino,
que só a ele e a Joaninha lá coubessem,
quando certa manhã:
– Promete ser fiel? Ó, até juro!
E todo cheio de um cantar de sino,
casados, para ali, enfim viessem,
colhendo beijos pela estrada chã.
VIII
Mas um dia, nem soube compreender
como tudo se dera.
O patrão lhe falou da Pátria e do Dever.
Pátria... Afinal a Pátria o que era?
Não conhecia outra além daqueles morros,
onde se criara à solta, livremente,
na súcia miserável dos cachorros,
como um trapo de gente
ou o galho de uma árvore maldita,
cujo destino está sempre em ser malho,
na escravidão da luta e do trabalho.
A vida lhe corria em lances de desdita,
toda cheia de fel
– fel que foi distilando, gota a gota,
para o cálice de flor de um sentimento,
que tal a palma agreste brota,
assim também brotara,
numa crosta de dor, de sofrimento.
Ninguém nunca em qualquer nada o ajudara.
Nem sequer conhecia as letras do a b, c.
E, afora aquela imagem da capela
enfeitada de flor de muçambê,
toda sua alma pertencia a ela,
à Joaninha da velha Conceição,
que lhe dera a ambição de ser "alguém",
cultivando-lhe a terra de ninguém
do pobre coração.
IX
Mas a escolta o reclama pra soldado.
E ele vai. Abandona o pouso pobre,
que logo se desfaz, abandonado.
Uma saudade, que a princípio o cobre,
bate as asas de leve, e foge e foge...
Sua pobre lembrança já morreu
nos olhos maliciosos de Joaninha,
que é já "sinhá", que tem até de seu
pulseirinhas douradas de "reloge"
e veste seda, em dias de leilão
e guarda, no calor da camarinha,
a rede mais bonita do patrão.
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Quando o cabo da guarda, entre risadas,
leu a carta do Chico Polidoro,
nem teve ação de dar-lhe três facadas.
Ficou assim a modo
de um estribo a que se parte o loro.
Mas à noitinha desapareceu.
No peito malferido
todo um inferno de ódios se acendeu.
Andou léguas e léguas sem descanso,
até aquele sol-ferocidade,
que o fez mais manso que um cordeiro manso,
incorporado à lôbrega manada
dos famintos em marcha pela estrada.
X
Acomete-o, de novo, o desvario.
A língua se lhe embola na garganta.
A poeirama da estrada é um grande rio,
que em torrentes lodosas se levanta.
Passam-lhe em frente imagens de roldão.
Um sargento que grita: "olé, cambada!"
e um discurso num dia de parada:
"A Pátria nos exige devoção.
Mãe bondosa, que vela e que sustenta"...
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Fasta de lado... vá... aguenta! Eta!
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É a Joaninha, sim, traz água benta...
Vê que não caias nessa escuridão,
cada vez mais escura...
E esse fantasma enorme,
bexiguento, asqueroso e assim cambeta...
É o vulto do patrão.
Chega mais perto, mais e mais e mais...
Para trás! Para trás! Para trás!
E os urubus em círculo baixando...
E os urubus em torno grasinando...
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