RUA GRANDE – Santino Gomes de Matos
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 11 de jul. de 2022
- 2 min de leitura
Atualizado: 26 de abr.
A Rua Grande desistiu de crescer mais.
Parou, num gesto de desânimo,
no meio da ladeira da Igreja do Monte.
Também do outro lado,
não teve ânimo de estirar-se até aos matapastos da várzea,
na linha reta do casario.
Fez-se contemplativa, mística, filantrópica
e agasalhou, nos sobradões mal-assombrados,
todos os morcegos e todas as andorinhas vagabundas.
Tem, agora, uma vida em câmara lenta,
com uma dezena de procissões por ano,
no passo calculado dos acompanhamentos.
Perdeu aquela petulância das cavalhadas e das "argolinhas",
nos arremessos folgazões e temerários,
quando toda palpitava em bandeirolas festivas,
chichirreando ao vento.
Que é do "Reizado" e do "Bumba meu Boi"?
Que é do "Fandango" armado no oitão da Igreja do Rosário?
Que é das "lapinhas" com um Jesus de louça deitado nas palhas
e fantasias de reis magos e de pastores, nos filhos do boticário?
Que é das meninas de branco, desafinadas, botando versos?
O André da "Sinhá" Vicença fazia de caboclo,
todo vestido de meia vermelha,
um caboclo de verdade, com arco, flecha e cinto de penas,
embasbacando os matutos de chapéu de couro.
E a Rua Grande, no negrume da noite cega,
rasgava fitas longas e ziguezagueantes de buscapés.
O aluá e o pé de moleque cheiravam nos tabuleiros.
E o furdúncio das visitas nos presepes,
e as saias de chita tesas do engomado,
e os pés dos matutos asfixiados em sapatos fringidores,
num eco fino, como um gemido dos dedos aperreados....
Tudo isso se foi.
A Rua Grande recolheu-se, conventual e silenciosa.
Parece maior, como se também estirasse, depois de morta.
Desbeiçou-se nas calçadas,
vestiu-se de "capim de burro".
À noite, tem uma luz elétrica desmaiada
como uma mortalha de mandapolão.
Às vezes acorda, em vozes de serenata,
cantigas velhas do fundo dos tempos.
E as vovós ficam por trás dos postigos,
com duas lágrimas nos olhos, grandes, paradas,
sem força para deslizarem.
A Rua Grande, quem a viu e quem a vê!
Rua morta, tradições mortas, cidade morta.
Do livro Procissão de Encontros
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