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SARJETA – Santino Gomes de Matos

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 11 de out. de 2022
  • 2 min de leitura

Atualizado: 24 de jan. de 2024

O barco de papel desce na água suja.

A mão esperta do moleque o desencalha,

desvia-o dos obstáculos, orienta-o.

A chuva foi um prazer para os garotos de rua.

Saíram todos para armar embarcações de jornal

e soltá-las na enxurrada,

em apostas curiosas,

como se fossem corridas de regatas.


Eles querem imitar a vida, sem nada conhecerem da vida.

São macaquinhos humanos do Grande Circo Universal.

Assobiam, fumam pontas de cigarros.

Fazem dos braços direções de autos invisíveis

e buzinam com as bochechas cheias de vento.

Jogam futebol com bolas de meias velhas

e aprendem os palavrões das assembleias políticas.

Esmurram-se, esbofeteiam-se,

como deputados da Direita e da Esquerda.

E há tanta naturalidade em tudo isso

que nem parece que houve modelos,

que houve paradigmas.


Levo um tempo sem fim

contemplando a alegria miúda das sarjetas.

Uma alegria franca, de superfície de alma.

Nenhum pensamento calculado a escurece.

Não há motivos.

Flutua como as coisas leves e soltas.

Pertence aos moleques sujos e famintos.

É deles só, de ninguém mais no mundo.


Pela minha porta também passam garotos crescidos,

de mãos ajeitadas nos bolsos fundos de umas calças alheias,

sobrando pano.

Têm um assobio menos agudo e mais concentrado.

Usam boné caído sobre o olho esquerdo.

Ostentam um ar salafrário às moças que encontram.

Gingam no andar e cheiram a aguardente.

Estão em qualquer fábrica, em qualquer baiuca,

"dando murro", aguentando a vida aos repuxos.

Passam indiferentes pelas enxurradas

e trazem um sinete de ódio nas feições.

Quem foi que lhes deu prumo à alma vadia?

Quem foi que os afundou dentro de si mesmos,

encaminhando-lhes a direção aos instintos crescidos e trevosos?

Serão assassinos, serão anarquistas, serão ladrões.

Cospem nomes complicados que mal entendem.

Mas estão prontos a agir, como forças de destruição.


Como eu tenho saudade neles

dos moleques turbulentos das sarjetas!

Foram os monstros de aço da vida

que transformaram em feras

os macaquinhos pitorescos do Grande Circo Universal.


Do livro Oração dos Humildes

©2023 – Todos os direitos reservados. Permitida a divulgação, desde que citada a autoria.

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