SAUDADES DA MORTE QUE NÃO TIVE – Santino Gomes de Matos
- Maria Isabel Gomes de Matos
- 11 de jul. de 2022
- 2 min de leitura
Atualizado: 26 de jan. de 2024
Sou um ser falhado no céu
e incontentado na terra.
Minha mãe tinha uma inveja santa das outras mães
com anjinhos na pátria celestial.
Eles se encarregavam de preparar bem junto ao trono de Deus
um assento de glórias às mães que ficavam no mundo,
chorosas mas consoladas.
E eu não satisfiz à minha mãe um desejo de esperanças supremas,
quando me marcou para seu arcanjo,
para seu mensageiro inocente e pulcro,
à direita de Deus Padre.
O menino fraco e doente,
tão do céu, tão da outra vida,
teimou em não morrer.
Não acompanhou as fugas místicas
de quem já cuidava do anjo
num corpo enfermo.
Ah, os percalços da existência como são imutáveis!
Minha mãe queria poupar-me a todos eles.
Mudava-me em formas perfeitas
a injúria da matéria imperfeita,
e enviava-me,
ainda quente do bafejo divino,
a integrar as legiões dos serafins.
A própria morte vestia-se de louçanias, aos meus olhos.
Iria num caixãozinho azul,
forrado de cetim azul, em trajos do Anjo da Guarda.
Igual aos anjinhos de procissão,
que eu nunca poderia ser,
sem a plástica dos meninos sadios.
Repiques festivos cantariam no ar também azul,
com andorinhas brincalhonas,
ajudando a levar nas asas viajeiras
a alma de luz de mais um querubim,
para os louvores do Criador.
Minha mãe choraria muito
(e ela chorava, de verdade),
mas havia de ficar tranquila,
consolada de toda a dor e de toda a saudade,
por me saber feliz, grandemente feliz, infinitamente feliz!
A separação seria por pouco tempo.
Para ela, alguns anos, para mim, alguns segundos,
na relatividade do eterno.
Comandando uma revoada de serafins,
logo viria ao encontro da alma de minha mãe,
para que unidos ficássemos na ventura de todo o sempre.
– Que me dizes a isso, meu filho?
No aconchego do seu abraço,
tão forte como se me quisesse enterrar no próprio peito,
eu punha minha ternura nuns olhos marejados de lágrimas.
Concordava com a minha sorte do céu.
E, na minha imaginação, não era a foice da Morte que se estampava.
Era a visão de brancuras muito brancas,
a transparência de asas de seda,
num voo imenso, para a imensidade de Deus.
Sou um ser falhado no céu
e incontentado na terra.
O Mundo apoderou-se de mim
e escureceu a minha vocação de inocência.
Esvaziou o conteúdo místico daquele ajuste de glórias celestes,
no colo de minha mãe.
Hoje, já é de sob os ferros de grilheta da vida
que sinto saudades da morte que não tive.
Do anjinho tão leve e tão puro,
que iria entre inocências de lírios e de crianças,
guiado por um repique festivo,
caminho do cemitério.
Com um céu no seio de Deus
e outro céu no coração de minha mãe,
retalhado de espadas mas transfigurado de fé,
seria, entre os dois, um traço vivo de luz,
ligando o Tempo e a Eternidade.
Do livro Procissão de Encontros
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