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SINHANINHA GOGÓ – Santino Gomes de Matos

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 11 de jul. de 2022
  • 2 min de leitura

Atualizado: 9 de mai.

Li sempre uma história de bondade

no pergaminho de rugas de tua face encerada.

Nunca te queixaste das veias quebradas do teu pescoço,

do teu gogó.

Era menina ainda

e obrigavam-te a carregos d'água do rio distante.

O teu pote era quase do teu tamanho,

equilibrado na rodilha de molambos.

E deram-te outro ainda maior,

por castigo de o haveres quebrado

numa noite de chuva e lama,

quando subias a ribanceira ladeirenta do rio.

Incharam-te as veias, no esforço sobre-humano,

e renderam-se na feiura heroica de um gogó.

Os filhos te vieram do mesmo modo,

por imposição da força e da violência.

Eram três e o mundo os foi arrebatando,

dentro da constância de dor do teu destino.

Um, para a cadeia, o homem das esperanças maiores.

Outro, a filha mais velha,

raptada numa noite de muita treva, muito tropel e muito grito.

Alarmou-se a vizinhança inteira

e nós éramos vizinhos da Sinhaninha Gogó.

O drama da escuridão ergueu-se no nome de Dulcineia,

aflitamente repetido.

Sinhaninha, descabelada,

com uma lamparina de longo pavio erguida sobre a cabeça,

procurava alumiar o caminho por onde a filha se fora.

Houve uma corrida alarmada de fachos acesos,

varando a noite cúmplice.

Dulcineia!

Ninguém conseguiu arrebatá-la dos braços do negro Valentim,

quixote de carvão, fundido no breu da escuridão espessa.

Da casa do nosso sítio, vimos, no outro dia, Sinhaninha Gogó

acurvada sobre a enxada,

a tomar, na roça, o lugar da fugitiva.

A filha mais nova, levou-a "de beiço" um capro qualquer

e acabou na sífilis e no hospital, morrendo sem confissão.


– Vamos à casa de Sinhaninha!

Era o passeio predileto da criançada.

– Ô de casa!

– Ô de fora!

Quem respondia era o papagaio, da cumeeira da casinha de palha.


Sinhaninha despejada para um canto da latada,

a fumar cachimbos sobre cachimbos.

Parecia ausente do mundo e, no entanto,

ainda tinha complacências inauditas,

para todo mundo.

Na latada, sobre forquilhas, não faltava nunca um pote novo,

cheio de água fresca,

para quem passasse,

para quem quisesse,

num oferecimento farto à sede de toda a gente.

E, para as provisões d'água,

ainda vinha na cabeça de cinzas de Sinhaninha,

o carrego cansado, dispneico, do rio distante...


O gogó de Sinhaninha!

Vejo-o crescido, vejo-o imenso.

Como se o peso de tantas injustiças o fizesse inchar e projetar-se num símbolo.

Como se condensasse a miséria de milhares de vidas,

maltratadas, torcidas, espezinhadas,

e, entretanto, exalando-se sempre em submissões resignadas de candura,

em cheiro de santidade!

Do livro Procissão de Encontros

©2023 – Todos os direitos reservados. Permitida a divulgação, desde que citada a autoria.

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