top of page

TRONO DE BALEIA – Santino Gomes de Matos

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 11 de jul. de 2022
  • 5 min de leitura

Atualizado: 28 de abr.

Será trono de baleia

o trono erguido do Senhor do Bonfim,

com as suas portas de ferro corrediças,

para o espetáculo semanal da aparição.

com os seus sete degraus de velas,

povoados de anjos papudos,

as faces gordas, redondas e satisfeitas,

como nádegas promovidas e felizes.


Será trono de baleia

o trono erguido do Senhor do Bonfim,

milagreiro de estupefacientes milagres:

o da guerra do Pinto, quando as balas do pelotão de fuzilamento

viraram bolhas de sabão no ar, ao grito do condenado à morte:

"Valha-me o Senhor do Bonfim!"


Será trono de baleia,

se em qualquer sexta-feira do tempo imemorial,

pelos séculos dos séculos amém,

for quebrado o compromisso ancestral da adoração,

e não se ouvirem os benditos de choro eterno

nos lábios murchos e subjetivos

de sucessivas gerações de velhinhas encarquilhadas.


Será trono de baleia,

com um olho de dilúvio nos quatro cantos do céu,

e as águas rolando e rugindo por sobre os carnaubais submersos,

com o mar nascendo em ondas inestancáveis

das várzeas esturricadas,

para vingar a homenagem esquecida ao Crucificado,

que sustenta, das derradeiras ruínas,

o destino despenhado da cidade morta.


Antigamente...

Dia do Ano-Bom, dia do Senhor do Bonfim.

Última infelicidade da miséria última,

quem não botava roupa nova na rua.

À missa cantada,

que o bronze solene do sino maior

anunciava de meia em meia hora,

iam damas de sedas e de chapéus.


Ostentosas dos seus teres,

ganjentas da prosápia do sangue apurado,

do nome de família com pátina de Portugal,

que gritava importâncias no genuflexório de veludo,

bem na frente do altar-mor.


Mas o povo da chita,

mas os "quebra-tigelas" das botas de couro cru

também tiravam delícias da festa do Senhor do Bonfim.

Os mais afoitos subiam aos pilares do adro

e exprimiam um entusiasmo rascante

num foguetão de dois palmos de taboca e pólvora,

que se danava azul acima,

a roncar mais grosso e mais forte

do que o orgulho entalado das damas enfeitadas.


O leilão do Senhor do Bonfim...

De um lado, senhoras e moças,

do outro, cavalheiros e rapazes,

e uma corrida sensual de olhares concupiscentes,

fogosamente cruzados,

incendiados pelas reservas da distância.


No redondo de luz do acetilene asmático,

como uma lua sonâmbula na noite negríssima,

milagreando no chão,

o leiloeiro passa e repassa

em torno à mesa estivada de prendas.

Brande um martelete com asas de fitas

e incita os lances altos: "Não entregue seu riacho"!

Chama os arrematantes pelos nomes,

para atirá-los uns contra os outros,

em pelejas de vaidades arrufadas,

até o último vintém do pé de meia sovina.


O Senhor do Bonfim vê tudo,

toda essa maroteira de generosidade

que perdoa aos seus devotos,

com a infinita indulgência dos braços abertos,

com o bálsamo inefável das chagas ricas,

sobre a cidade alvoroçada de bebedeiras e de safadezas sexuais.


Fogos e fogos de trempes, na praça imensa,

a cozinharem bolinhos e quentão,

para uma freguesia de dobrões e de patacas,

no giro de algumas mulheres se oferecendo.


Dem, dem, dem, dem

quem tem tentém,

vintém tem,

vintém tem, tem,

quem tem tentém,

dem, dem, dem, dendém, dendém,

amém, amém, amém, amém...


As torres duelam alto,

apostadas em paulo-afonsos de repiques,

porque aí vai a procissão do Senhor do Bonfim.

O andor esmaga os ombros dos levadores,

mas os quatro paus arrasantes

foram disputados com fúria quase sanguinária.

O vigário decidiu pelos figurões de pés descalços,

em promessas humildes de humildes carregadores.

E o Senhor do Bonfim a lhes pesar no orgulho mal disfarçado,

com o poder imenso do céu

sobre a fraqueza hipócrita das criaturas.


Quem veste fraque é o mestre da banda, maestríssimo.

Quem ressuscita uma farda da guarda nacional

é o Bié, inspetor de quarteirão,

das cachaçadas cíclicas, monumentais.


Sustentam o pálio todas as autoridades, menos uma,

que o promotor encheu o quengo de Augusto Comte

e lê Zola traduzido, na hora do desfile.


Mas a procissão prossegue.

A cada três casas, um foguete de bomba real.

A cada esquina, uma bateria estirada,

como uma salamandra de papoucos.


A banda vai charangando dobrados velhos,

tão velhos que os séculos confraternizam

e passam de braços dados,

numa cadeia milagrosa de eternidade doméstica:

os mesmos passos milimetrados, os mesmos gestos,

os mesmos benditos exasperados de súplicas.


Aliás, seu Theo espírita, o único espírita do lugar,

vê duas procissões:

uma que desliza lenta e ritmada,

nas ruas de folhas de mangueiras,

e outra, em cima, nos clichês do espaço,

com um mundo de fantasmas

arrastados em vaga triste de penitência.


O cortejo agora atinge a praça imensa

da igrejinha multicentenária.

Aos olhares distantes, parece vir do fim do mundo

a cobra de coral do préstito multicor,

movendo-se minúscula e preguiçosa,

na fila dos andores misturadamente coloridos

dos estandartes azuis, vermelhos, verdes, brancos e amarelos.

Opas de fogo dos Irmãos do Santíssimo.

Opas de capim melado dos Irmãos das Almas.

Asas douradas de todos os anjinhos.

É quando rompe, estrondante, o fogo do Senhor do Bonfim.


A fogueada, em estralada alarmada,

risca mil coriscos nos espaços baços.

Roncam ronqueiras de estrondos redondos.


E na chapa da praça,

é um taratatá de papoucos,

no fogo emendado das baterias,

com rebentações sucessivas de estouros louros.

Ateiam-se as superbombas

amarradas em estacas possantes.

Treme o chão um terremoto.


As trevas da noite incendeiam-se de inferno vivo.

Explosões que engolem explosões,

para vomitar estrondos maiores,

que se encontram, se repelem,

e depois se fundem

no mesmo trovão ribombado

de sustentado refrão em ão.


O horror denso das labaredas e da fumarada

emoldura ensaio amplo de loucura coletiva.

Em dispersão de carreira, homens, mulheres e crianças.

Anjinhos carregados nos braços precípites das mães.

Estandartes usados como escudos.

Agachamentos de medo aqui e ali.

Mãos pânicas em toda a parte,

por sobre as cabeças, como em pedidos de misericórdia.

É a chuva de fogo das flechas dos foguetes

e o arremesso abraseado dos cacos de macaúbas,

das baterias em saraivada.


Por sobre o espetáculo medonhamente santo e sublime da noite conflagrada,

passa, sereno e dominador, o andor do Senhor do Bonfim.

Pois os pés nus dos que o carregam não se queimam nos braseiros.

Nem há cana de foguetão desfechada do alto

que não se lhes desvie milagrosamente da direção.

Nem arremesso de tocha que não vire flor de ouro

sobre os ombros esmagados pela imagem divina.


Será trono de baleia o trono erguido do Senhor do Bonfim

se em qualquer Ano-Bom de qualquer ano dos tempos por virem

o andor do Deus Crucificado

chegar à porta principal da sua igrejinha

depois de terminado o "fogo" em seu louvor.


O "fogo do Senhor do Bonfim",

que os ecos beatos carregam consigo a léguas distantes,

até os matutos, que se põem de joelhos,

nos terreiros varridos,

a baterem misericórdias no peito.


O "fogo do Senhor do Bonfim",

antecipação em miniatura do quadro do fim dos tempos,

quando os anjos incendiarem os quatro cantos do planeta,

e caírem do céu e brotarem do chão

as labaredas da depuração, pelo fogo,

dos homens e das coisas,

em face da exaltação essencial do Deus Crucificado.


Será trono de baleia

o trono erguido do Senhor do Bonfim.

Do livro Procissão de Encontros

©2023– Todos os direitos reservados. Permitida a divulgação, desde que citada a autoria.


bottom of page