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VOCAÇÃO – Santino Gomes de Matos

  • Maria Isabel Gomes de Matos
  • 12 de jul. de 2022
  • 2 min de leitura

Atualizado: 6 de dez. de 2023

Quando menos esperei, estava em cena.

O pano levantou-se, ergueu-se de uma vez

e eu nem tive tempo de assombrar-me.

Ficou-me apenas a impressão áspera de que fui empurrado.

Não resta dúvida que me empurraram.

"Toca a trabalhar, toca a representar algum papel!"

Eu ainda esfregava os olhos,

com uma sensação gostosa de escuro,

de penumbras mornas e inconscientes,

que distanciavam as coisas e as pessoas,

envolvendo-as em molezas de sonho.


Linhas duras e severas plantaram-se como traves

na fluidez dos meus horizontes.

Os contornos acentuaram-se rispidamente.

Quando menos esperei, estava dentro da vida,

com um papel inferior de "extra",

na era absurda e paradoxal dos cubismos.


Às vezes, tenho vontade de gritar,

dirigindo-me a um diretor de cena invisível:

– Olhe como não tenho vocação para este número!

– Falta-me clima, falta-me ambiente...

– O escândalo de cimento dos arranha-céus produz-me vertigens.

– A minha alma não se dá com paisagens de pedra.

– Os cocktails me ardem como brasa, na garganta.

– Lido mal com taças de champagne e com mulheres que ostentam, em tintas,

a alma toda inteira.

– Faltam-me dedos para caudatório de honrarias ocas.

– Não sei semear misérias e, depois, passar sobre elas, de viseira erguida,

porque me deram o caminho do triunfo.

– Olha, Sr. Diretor, como falta unto à minha espinha.

– Como são pobres as minhas reservas de desprezo às virtudes antigas, aos sentimentos morais caducos.

– Como é mesquinho o celeiro de ódios no meu coração, para a luta feroz que os homens lutam, guerreando-se, matando-se, destruindo-se.

– A etiqueta de homem moderno, século XX, grudou-se mal em minhas costas.

– A carapuça de civilizado impede-me de dormir.

– Quero alegrias íntimas, puras, sossegadas, dentro de movimentos naturais.

– Quero ritmos de alma, da alma da minha gente, que se estiola na dureza dos asfaltos.

– Quero paisagens vivas, de muito sol e muito espaço.

– Sr. Diretor, não sei mover-me.

– Não nasci para a camisa de força de uma civilização de ismos.

"Toca a trabalhar. Toca a representar algum papel!".

Empurraram-me. Não resta dúvida de que me empurraram.

A corrente subterrânea da minha índole foi como um riacho de águas ingênuas, que encontrasse, logo ao nascer, um sumidouro na areia.


Do livro Vozes Íntimas

©2023 – Todos os direitos reservados. Permitida a divulgação, desde que citada a autoria.

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